O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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O Livro dos Espíritos.

(1ª edição)

O papel de Allan Kardec na codificação espírita

II

“Este livro é o repositório de seus ensinos. Foi escrito por ordem e sob o ditado de Espíritos superiores. para estabelecer os fundamentos de uma filosofia racional, isenta dos preconceitos do espírito de sistema…” 25


O contato inicial de Allan Kardec com os fenômenos espíritas deu-se em maio de 1855, na casa da Sra. Plainemaison. Foi aí que ele presenciou, pela primeira vez, o fenômeno das mesas que giravam, saltavam e corriam em condições tais que não davam margem a qualquer dúvida. Ali assistiu também a alguns ensaios, muito imperfeitos, é verdade, de escrita mediúnica numa ardósia, com o auxílio de uma cesta. Como ele mesmo admite, suas ideias estavam longe de precisar-se, mas havia ali um fato que necessariamente decorria de uma causa, de modo que naquelas aparentes futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos, ele entrevia qualquer coisa de sério, como que a revelação de uma nova lei, que tomou a si estudar a fundo. Outras oportunidades se lhe apresentaram para observar os fatos com mais atenção, como até então ainda não fizera.

Havendo travado conhecimento com a família Baudin, foi convidado pelo chefe da casa para assistir às sessões semanais que se realizavam em sua residência e às quais se tornou, desde logo, muito assíduo. Bastante numerosas, essas reuniões tinham como médiuns as senhoritas Baudin, que escreviam numa ardósia com o auxílio de uma cesta chamada carrapeta, processo esse que, por exigir o concurso de duas pessoas, exclui toda possibilidade de intromissão das ideias do médium. Nelas, Allan Kardec teve o ensejo de ver comunicações contínuas e respostas a perguntas formuladas, até mesmo a perguntas mentais, que acusavam, de modo evidente, a intervenção de uma inteligência estranha.

Foi em tais reuniões que o futuro Codificador começou seus estudos sérios de Espiritismo, não tanto por meio de revelações, mas de observações. Assim, aplicou a essa nova ciência o método experimental. Em vez de elaborar teorias preconcebidas, observava cuidadosamente, comparava, deduzia consequências e dos efeitos procurava remontar às causas, por dedução e pelo encadeamento lógico dos fatos, não admitindo por válida uma explicação senão quando podia resolver todas as dificuldades da questão. Logo de saída percebeu a gravidade da exploração que ia empreender e a chave do problema tão obscuro e tão controvertido do futuro da Humanidade, a solução que procurara em toda sua vida, verdadeira revolução nas ideias e nas crenças, o que o obrigava a andar com a maior circunspeção e não levianamente, ser positivista e não idealista, para não se deixar iludir.

Um dos primeiros resultados que colheu de suas observações foi que os Espíritos, nada mais sendo que as almas dos homens, não possuíam nem a plena sabedoria, nem a ciência integral; que o saber de que dispunham se limitava ao grau de adiantamento que haviam alcançado, e que a opinião deles só tinha o valor de uma opinião pessoal. Reconhecida desde o princípio, essa verdade o preservou do grave escolho de crer na infalibilidade dos Espíritos e o impediu de formular teorias imaturas, tendo como base o que fora dito por um ou alguns deles. Do menor ao maior, os Espíritos foram meios de informá-lo, e não reveladores predestinados. Observar, comparar e julgar, tal a regra que constantemente seguiu.

Até então, as sessões na casa do Sr. Baudin não tinham tido nenhum fim determinado. Ali o professor Rivail tentou obter a resolução dos problemas que lhe interessavam, do ponto de vista da Filosofia, da Psicologia e da natureza do mundo invisível. Para tanto, levava a cada sessão uma série de perguntas preparadas e metodicamente dispostas, perguntas sempre respondidas com precisão, profundeza e lógica. A princípio, ele cuidara apenas de instruir-se, mas quando viu que aquilo constituía um todo e ganhava as proporções de uma doutrina, teve a ideia de publicar os ensinos recebidos, para a instrução de toda gente. Foram aquelas mesmas questões que, sucessivamente desenvolvidas e completadas, constituíram a base de O Livro dos Espíritos26

***

Esse maravilhoso esforço de síntese bem demonstra a habilidade de Allan Kardec em descrever, de modo sumário, sua iniciação no Espiritismo, mais ou menos como se encontra em Obras póstumas, publicada em 1890 por seus continuadores. Entretanto, e sobre o mesmo assunto, já ele adiantava em 1858:

Muitas vezes já nos dirigiram perguntas sobre a maneira por que foram obtidas as comunicações que são objeto de O livro dos Espíritos. Resumimos aqui, com muito prazer, as respostas que temos dado a esse respeito, pois que isso nos ensejará ocasião de cumprir um dever de gratidão para com as pessoas que, de boa vontade, nos prestaram seu concurso.

Como explicamos, as comunicações por pancadas, ou tiptologia, são muito lentas e bastante incompletas para um trabalho alentado; por isso jamais utilizamos esse recurso: tudo foi obtido através da escrita e por intermédio de vários médiuns psicógrafos. Nós mesmos preparamos as perguntas e coordenamos o conjunto da obra; as respostas são, textualmente as que foram dadas pelos Espíritos; a maior parte delas foi escrita sob nossas vistas, algumas foram tomadas das comunicações que nos foram enviadas por correspondentes ou que recolhemos para estudo em toda parte onde estivemos: a esse efeito, os Espíritos parecem multiplicar aos nossos olhos os motivos de observação.

Os primeiros médiuns que concorreram para o nosso trabalho foram as senhoritas B***, cuja boa vontade jamais nos faltou; este livro foi escrito quase por inteiro por seu intermédio e na presença de numeroso auditório, que assistia às sessões com o mais vivo interesse. Mais tarde os Espíritos recomendaram sua completa revisão em conversas particulares para fazerem todas as adições e correções que julgaram necessárias. Essa parte essencial do trabalho foi feita com o concurso da senhorita Japhet, que se prestou com a maior boa vontade e o mais completo desinteresse a todas as exigências dos Espíritos, pois eram eles que marcavam os dias e as horas para suas lições… 27

No entanto, Allan Kardec não se contentou com essa verificação. Os Espíritos assim o haviam recomendado. Tendo-lhe as circunstâncias posto em relação com outros médiuns, sempre que se apresentava ocasião ele a aproveitava para propor algumas das questões que lhe pareciam mais espinhosas, de sorte que mais de dez médiuns prestaram concurso a esse trabalho. Da comparação e da fusão de todas as respostas, coordenadas, classificadas e muitas vezes retocadas no silêncio da meditação, foi que ele elaborou a primeira edição de O Livro dos Espíritos28

A edição princeps ( † ) do livro foi entregue à publicidade no dia 18 de abril de 1857. Dividido em três partes, suas quinhentas e uma perguntas e respectivas respostas estão distribuídas em duas colunas, o que torna singular sua apresentação gráfica, se comparada à dos demais livros publicados por Allan Kardec. Seus mil e duzentos exemplares 29 e 30 se esgotaram em 1859, 31 um ano antes, portanto, da publicação da 2ª edição, que, com 1019 perguntas e respostas, distribuídas em coluna única e contendo quatro partes, se tornou a edição definitiva de O Livro dos Espíritos, tal como o conhecemos hoje.



[25] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos - Prolegômenos, p. 70.

[26] Id. Obras Póstumas - 2ª parte, cap. 1 - A minha primeira iniciação no Espiritismo, p. 345-353.

[27] Id. Revista Espírita - O Livro dos Espíritos, v. 1, 1858, p. 68-69.

[28] Id. Obras Póstumas - 2ª parte, cap. 1 - A minha primeira iniciação no Espiritismo, p. 352-353.

[29] ABREU, Silvino Canuto. O Livro dos Espíritos e sua tradição histórica e lendária, capítulo 1, p. 42.

[30] N.T.: Há quem pense que a tiragem da 1ª edição de O Livro dos Espíritos foi bem menor, algo em torno de trezentos exemplares, ou menos, visto que Allan Kardec o editou por sua conta e risco, e não era, ao que se saiba, homem de grandes recursos financeiros. Embora sem nos apoiarmos em dados objetivos, que não existem, não descartamos a possibilidade de uma tiragem bem maior, já que o livro, mesmo abordando um assunto que era a coqueluche do momento, demorou mais de dois anos para esgotar-se. Além disso, vale lembrar que a obra só continha 176 páginas e foi impressa em papel de qualidade inferior, o que diminuiu bastante o seu custo final.

[31] KARDEC, Allan. Revista Espírita - O Espiritismo em 1860, v. 3, 1860, p. 19.

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