O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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O Céu e o Inferno — 2ª Parte.

(Idioma francês)

Capítulo primeiro.


O PASSAMENTO.  † 

1. — A certeza da vida futura não exclui as apreensões quanto à passagem desta para a outra vida. 2 Há muita gente que teme não a morte, em si, mas o momento da transição. Sofremos ou não nessa passagem? Por isso se inquietam, e com razão, visto que ninguém foge à lei fatal dessa transição. 3 Podemos dispensar-nos de uma viagem neste mundo, menos essa. Ricos e pobres, devem todos faze-la, e, por dolorosa que seja a franquia, nem posição nem fortuna poderiam suavizá-la.


2. — Vendo-se a calma de alguns moribundos e as convulsões terríveis de outros, pode-se previamente julgar que as sensações experimentadas nem sempre são as mesmas. Quem poderá no entanto esclarecer-nos a tal respeito? Quem nos descreverá o fenômeno fisiológico da separação entre a alma e o corpo? 2 Quem nos contará as impressões desse instante supremo quando a Ciência e a Religião se calam? E calam-se porque lhes falta o conhecimento das leis que regem as relações do Espírito e da matéria, parando uma nos umbrais da vida espiritual e a outra nos da vida material. 3 O Espiritismo é o traço de união entre as duas, e só ele pode dizer-nos como se opera a transição, quer pelas noções mais positivas da natureza da alma, quer pela descrição dos que deixaram este mundo. 4 O conhecimento do laço fluídico que une a alma ao corpo é a chave desse e de muitos outros fenômenos.


3. — A insensibilidade da matéria inerte é um fato, e só a alma experimenta sensações de dor e de prazer. 2 Durante a vida, toda a desagregação material repercute na alma, que por este motivo recebe uma impressão mais ou menos dolorosa. É a alma e não o corpo quem sofre, pois este não é mais que instrumento da dor: — aquela é o paciente. 3 Após a morte, separada a alma, o corpo pode ser impunemente mutilado que nada sentirá; aquela, por insulada, nada experimenta da destruição orgânica; 4 a alma tem sensações próprias cuja fonte não reside na matéria tangível.

5 O perispírito é o envoltório da alma e não se separa dela nem antes nem depois da morte. Ele não forma com ela mais que uma só entidade, e nem mesmo se pode conceber uma sem outro. 6 Durante a vida o fluido perispirítico penetra o corpo em todas as suas partes e serve de veículo às sensações físicas da alma, do mesmo modo como esta, por seu intermédio, atua sobre o corpo e dirige-lhe os movimentos.


4. — A extinção da vida orgânica acarreta a separação da alma em consequência do rompimento do laço fluídico que a une ao corpo, mas essa separação nunca é brusca; 2 o fluido perispiritual só pouco a pouco se desprende de todos os órgãos, de sorte que a separação só é completa e absoluta quando não mais reste um átomo do perispírito ligado a uma molécula do corpo. 3 A sensação dolorosa da alma, por ocasião da morte, está na razão direta da soma dos pontos de contato existentes entre o corpo e o perispírito, e, por conseguinte, também da maior ou menor dificuldade que apresenta o rompimento. 4 Não é preciso portanto dizer que, conforme as circunstâncias, a morte pode ser mais ou menos penosa. Estas circunstâncias é que nos cumpre examinar.


5. — Estabeleçamos em primeiro lugar, e como princípio, os quatro seguintes casos, que podemos reputar situações extremas dentro de cujos limites há uma infinidade de variantes:   Se no momento em que se extingue a vida orgânica o desprendimento do perispírito fosse completo, a alma nada sentiria absolutamente;  se nesse momento a coesão dos dois elementos estiver no auge de sua força, produz-se uma espécie de ruptura que reage dolorosamente sobre a alma;  se a coesão for fraca, a separação torna-se fácil e opera-se sem abalo;  se após a cessação completa da vida orgânica existirem ainda numerosos pontos de contato entre o corpo e o perispírito, a alma poderá ressentir-se dos efeitos da decomposição do corpo, até que o laço inteiramente se desfaça.

5 Daí resulta que o sofrimento, que acompanha a morte, está subordinado à força adesiva que une o corpo ao perispírito; 6 que tudo o que puder atenuar essa força, e acelerar a rapidez do desprendimento, torna a passagem menos penosa; 7 e, finalmente, que, se o desprendimento se operar sem dificuldade, a alma deixará de experimentar qualquer sentimento desagradável.


6. — Na transição da vida corporal para a espiritual, produz-se ainda um outro fenômeno de importância capital — a perturbação. 2 Nesse instante a alma experimenta um torpor que paralisa momentaneamente as suas faculdades, neutralizando, ao menos em parte, as sensações. É como se disséssemos um estado de catalepsia, de modo que a alma quase nunca testemunha conscientemente o derradeiro suspiro. 3 Dizemos quase nunca, porque há casos em que a alma pode contemplar conscientemente o desprendimento, como em breve veremos. 4 A perturbação pode, pois, ser considerada o estado normal no instante da morte e perdurar por tempo indeterminado, variando de algumas horas a alguns anos. 5 À proporção que se liberta, a alma encontra-se numa situação comparável à de um homem que desperta de profundo sono; as ideias são confusas, vagas, incertas; a vista apenas distingue como que através de um nevoeiro, mas pouco a pouco se aclara, desperta-se-lhe a memória e o conhecimento de si mesma; 6 bem diverso é, contudo, esse despertar; calmo, para uns, acorda-lhes sensações deliciosas; tétrico, aterrador e ansioso, para outros, é qual horrendo pesadelo.


7. — O último alento quase nunca é doloroso, uma vez que ordinariamente ocorre em momento de inconsciência, mas a alma sofre antes dele a desagregação da matéria, nos estertores da agonia, e, depois, as angústias da perturbação. 2 Demo-nos pressa em afirmar que esse estado não é geral, porquanto a intensidade e duração do sofrimento estão na razão direta da afinidade existente entre corpo e perispírito; 3 assim, quanto maior for essa afinidade, tanto mais penosos e prolongados serão os esforços da alma para desprender-se; 4 há pessoas nas quais a coesão é tão fraca que o desprendimento se opera por si mesmo, como que naturalmente; é como se um fruto maduro se desprendesse do seu caule, e é o caso das mortes calmas, de pacífico despertar.


8. — A causa principal da maior ou menor facilidade de desprendimento é o estado moral da alma. 2 A afinidade entre o corpo e o perispírito é proporcional ao apego à matéria, que atinge o seu máximo no homem cujas preocupações dizem respeito exclusiva e unicamente à vida e gozos materiais; 3 ao contrário, nas almas puras, que antecipadamente se identificam com a vida espiritual, o apego é quase nulo. 4 E desde que a lentidão e a dificuldade do desprendimento estão na razão do grau de pureza e desmaterialização da alma, de nós somente depende o tornar fácil ou penoso, agradável ou doloroso, esse desprendimento.

5 Posto isto, quer como teoria, quer como resultado de observações, resta-nos examinar a influência do gênero de morte sobre as sensações da alma nos últimos transes.


9. — Em se tratando de morte natural resultante da extinção das forças vitais por velhice ou doença, o desprendimento opera-se gradualmente; 2 para o homem cuja alma se desmaterializou e cujos pensamentos se destacam das coisas terrenas, o desprendimento quase se completa antes da morte real, isto é, ao passo que o corpo ainda tem vida orgânica, já o Espírito penetra a vida espiritual, apenas ligado por elo tão frágil que se rompe com a última pancada do coração. 3 Nesta contingência o Espírito pode ter já recuperado a sua lucidez, de molde a tornar-se testemunha consciente da extinção da vida do corpo, considerando-se feliz por tê-lo deixado; 4 para esse a perturbação é quase nula, ou antes, não passa de ligeiro sono calmo, do qual desperta com indizível impressão de esperança e ventura.

5 No homem materializado e sensual, que mais viveu do corpo que do Espírito, e para o qual a vida espiritual nada significa, nem sequer lhe toca o pensamento, tudo contribui para estreitar os laços materiais, e, quando a morte se aproxima, o desprendimento, conquanto se opere gradualmente também, demanda contínuos esforços. 6 As convulsões da agonia são indícios da luta do Espírito, que às vezes procura romper os elos resistentes, e outras se agarra ao corpo do qual uma força irresistível o arrebata com violência, molécula por molécula.


10. — Quanto menos vê o Espírito além da vida corporal, tanto mais se lhe apega, e, assim, sente que ela, lhe foge e quer retê-la; em vez de se abandonar ao movimento que o empolga, resiste com todas as forças e pode mesmo prolongar a luta por dias, semanas e meses inteiros. 2 Certo, nesse momento o Espírito não possui toda a lucidez, visto como a perturbação de muito se antecipou à morte; mas nem por isso sofre menos, e o vácuo em que se acha, e a incerteza do que lhe sucederá, agravam-lhe as angústias. 3 Dá-se por fim a morte, e nem por isso está tudo terminado; a perturbação continua, ele sente que vive, mas não define se material, se espiritualmente, luta, e luta ainda, até que as últimas ligações do perispírito se tenham de todo rompido. 4 A morte pôs termo à moléstia efetiva, porém, não lhe sustou as consequências, e, enquanto existirem pontos de contato do perispírito com o corpo, o Espírito ressente-se e sofre com as suas impressões.


11. — Quão diversa é a situação do Espírito desmaterializado, mesmo nas enfermidades mais cruéis! Sendo frágeis os laços fluídicos que o prendem ao corpo, rompem-se suavemente; 2 depois, a confiança do futuro entrevisto em pensamento ou na realidade, como sucede algumas vezes, fá-lo encarar a morte qual redenção e as suas consequências como prova, advindo-lhe daí uma calma resignada, que lhe ameniza o sofrimento. 3 Após a morte, rotos os laços, nem uma só reação dolorosa que o afete; o despertar é lépido, desembaraçado; por sensações únicas: o alívio, a alegria!


12. — Na morte violenta as sensações não são precisamente as mesmas. 2 Nenhuma desagregação inicial há começado previamente a separação do perispírito; a vida orgânica em plena exuberância de força é subitamente aniquilada. Nestas condições, o desprendimento só começa depois da morte e não pode completar-se rapidamente. 3 O Espírito, colhido de improviso, fica como que aturdido e sente, e pensa, e acredita-se vivo, prolongando-se esta ilusão até que compreenda o seu estado. 4 Este estado intermediário entre a vida corporal e a espiritual é dos mais interessantes para ser estudado, porque apresenta o espetáculo singular de um Espírito que julga material o seu corpo fluídico, experimentando ao mesmo tempo todas as sensações da vida orgânica. 5 Há, além disso, dentro desse caso, uma série infinita de modalidades que variam segundo os conhecimentos e progressos morais do Espírito. 6 Para aqueles cuja alma está purificada, a situação pouco dura, porque já possuem em si como que um desprendimento antecipado, cujo termo a morte mais súbita não faz senão apressar; 7 outros há, para os quais a situação se prolonga por anos inteiros. É uma situação essa muito frequente até nos casos de morte comum, que nada tendo de penosa para Espíritos adiantados, se torna horrível para os atrasados. 8 No suicida, principalmente, excede a toda expectativa. Preso ao corpo por todas as suas fibras, o perispírito faz repercutir na alma todas as sensações daquele, com sofrimentos cruciantes.


13. — O estado do Espírito por ocasião da morte pode ser assim resumido:

2 Tanto maior é o sofrimento, quanto mais lento for o desprendimento do perispírito; 3 a presteza deste desprendimento está na razão direta do adiantamento moral do Espírito; 4 para o Espírito desmaterializado, de consciência pura, a morte é qual um sono breve, isento de agonia, e cujo despertar é suavíssimo.


14. — Para que cada qual trabalhe na sua purificação, reprima as más tendências e domine as paixões, preciso se faz que abdique das vantagens imediatas em prol do futuro; 2 visto como, para identificar-se com a vida espiritual, encaminhando para ela todas as aspirações e preferindo-a à vida terrena, não basta crer, mas compreender; devemos considerar essa vida debaixo de um ponto de vista que satisfaça ao mesmo tempo à razão, à lógica, ao bom senso e ao conceito em que temos a grandeza, a bondade e a justiça de Deus. 3 Considerado deste ponto de vista, o Espiritismo, pela fé inabalável que proporciona, é, de quantas doutrinas filosóficas que conhecemos, a que exerce mais poderosa influência.

4 O espírita sério não se limita a crer, ele crê porque compreende, e compreende, porque raciocina; 5 a vida futura é uma realidade que se desenrola incessantemente a seus olhos; uma realidade que ele toca e vê, por assim dizer, a cada passo e de modo que a dúvida não pode empolgá-lo, ou ter guarida em sua alma. 6 A vida corporal, tão limitada, amesquinha-se diante da vida espiritual, da verdadeira vida. Que lhe importam os incidentes da jornada se ele compreende a causa e utilidade das vicissitudes humanas, quando suportadas com resignação? 7 A alma eleva-se-lhe nas relações com o mundo visível; os laços fluídicos que o ligam à matéria enfraquecem-se, operando-se por antecipação um desprendimento parcial que facilita a passagem para a outra vida. 8 A perturbação consequente à transição pouco perdura, porque, uma vez franqueado o passo, para logo se reconhece, nada estranhando, antes compreendendo, a sua nova situação.


15. — O Espiritismo não é seguramente indispensável a esse resultado; assim não tem ele a pretensão de assegurar, ele só, a salvação da alma, mas ele a facilita pelos conhecimentos que fornece, pelos sentimentos que inspira, como pelas disposições em que coloca o Espírito, fazendo-lhe compreender a necessidade de melhorar-se. 2 Ele dá a mais, e a cada um, os meios de auxiliar o desprendimento doutros Espíritos ao deixarem o invólucro material, abreviando-lhes a perturbação pela evocação e pela prece. 3 Pela prece sincera, que é uma magnetização espiritual, provoca-se a desagregação mais rápida do fluido perispiritual; 4 pela evocação conduzida com sabedoria e prudência, com palavras de benevolências e conforto, combate-se o entorpecimento do Espírito, ajudando-o a reconhecer-se mais cedo, e, se é sofredor, incute-se-lhe o arrependimento — único meio de abreviar seus sofrimentos. n



[1] Os exemplos que vamos transcrever mostram-nos os Espíritos nas diferentes fases de felicidade e infelicidade da vida espiritual. Não fomos procurá-los nas personagens mais ou menos ilustres da Antiguidade, cuja situação pudera ter mudado consideravelmente depois da existência que lhes conhecemos, e que por isto não oferecessem provas suficientes de autenticidade. Ao contrário, tomamos esses exemplos nas circunstâncias mais ordinárias da vida contemporânea, uma vez que assim pode cada qual encontrar mais similitudes e tirar, pela comparação, as mais proveitosas instruções. Quanto mais próxima de nós está a existência terrestre dos Espíritos — quer pela posição social, quer por laços de parentesco ou de meras relações — tanto mais nos interessamos por eles, tornando-se fácil averiguar-lhes a identidade. As posições vulgares são as mais comuns, as de maior número, podendo cada qual aplicá-las em si, de modo a tornarem-se úteis, ao passo que as posições excepcionais comovem menos, porque saem da esfera dos nossos hábitos. Não, foram, pois, as sumidades que procuramos, e se nesses exemplos se encontram quaisquer personagens conhecidas, de obscuras se compõe o maior número. Acresce que nomes retumbantes nada adiantariam à instrução que visamos, podendo ainda ferir suscetibilidades. E nós não nos dirigimos nem aos curiosos, nem aos amadores de escândalos, mas tão somente aos que pretendem instruir-se.

Esses exemplos poderiam ser multiplicados infinitamente, porém, forçados a limitar-lhes o número, fizemos escolha dos que pudessem melhor esclarecer o mundo espiritual e o seu estado, já pela situação dos Espíritos, já pelas explicações que estavam no caso de fornecer. A maior parte destes exemplos está inédita, e apenas alguns, poucos, foram já publicados na Revista Espírita. Destes, suprimimos supérfluas minúcias, conservando apenas o essencial ao fim que nos propusemos, ajustando-lhes as instruções complementares a que poderão dar lugar ulteriormente.


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