O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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O Céu e o Inferno — 2ª Parte.

CRIMINOSOS ARREPENDIDOS.
(Idioma francês)

Capítulo VI.

[Exemplo 5.]

JACQUES LATOUR.

Assassino condenado pelo júri de Foix e executado em setembro de 1864.

1. — Em reunião íntima de sete a oito pessoas, havida em Bruxelas a 13 de setembro de 1864 e à qual assistíamos, 2 foi pedido a uma senhora médium que tomasse do lápis, sem que aliás houvéssemos feito qualquer evocação especial. Possuído de extraordinária agitação, ei-lo a traçar caracteres muito grossos e depois, rasgando o papel, exclama:

“Arrependo-me! arrependo-me! Latour.”

3 Surpreendidos com a inesperada comunicação, de modo algum provocada, visto como ninguém pensara nesse infeliz, cuja morte até então era ignorada por uma parte dos assistentes, dirigimos ao Espírito palavras de conforto e comiseração, fazendo-lhe em seguida esta pergunta:

4 — Que motivo vos levou a manifestar-vos aqui, de preferência a outro lugar, quando não vos evocamos?

5 O médium, que é também médium falante, responde de viva voz:

6 “Vi que, almas compassivas, teríeis piedade de mim, ao passo que outros ou me evocavam mais por curiosidade que por caridade, ou de mim se afastavam horrorizados.”

7 Depois começou por uma cena indescritível que não durou mais de meia hora. 8 O médium, juntando os gestos e a expressão da fisionomia à palavra, deixava patente a identificação do Espírito com a sua pessoa; às vezes, esses gestos de cruel desespero desenhavam vivamente o seu sofrimento; o tom da sua voz era tão compungido, as súplicas tão veementes, que ficávamos profundamente comovidos.

9 Alguns estavam mesmo atemorizados com a superexcitação do médium, mas nós sabíamos que a manifestação de um ente arrependido, que implora piedade, nenhum perigo poderia oferecer. 10 Se ele buscou os órgãos do médium, é que melhor desejava patentear a sua situação, a fim de que mais nos interessássemos pela sua sorte, e não como os Espíritos obsessores e possessores, que visam apoderar-se dos médiuns para os dominarem. 11 Tal manifestação lhe fora talvez permitida não só em benefício próprio, como também para edificação dos circunstantes.

12 Ei-lo a exclamar:

“Oh! sim, piedade… muito necessito dela… Não sabeis o que sofro… Não o sabeis, e não podereis compreendê-lo. É horrível! A guilhotina!… Que vale a guilhotina comparada a este sofrimento de agora? Nada! — é um instante. Este fogo que me devora, sim, é pior, porque é uma morte contínua, sem tréguas nem repouso… sem-fim!

13 “E as minhas vítimas, ali estão ao redor, a mostrar-me os ferimentos, a perseguir-me com seus olhares… Aí estão, e vejo-as todas… todas… sem poder fugir-lhes! E este mar de sangue?! E este ouro manchado de sangue?! Tudo aí está… tudo… e sempre ante meus olhos! E o cheiro de sangue… Não o sentis? Oh! Sangue e sempre sangue! Hei-las que imploram, as pobres vítimas, e eu a feri-las sempre… sempre… impiedosamente!… O sangue inebria-me…

14 “Acreditava que depois da morte tudo estaria terminado, e assim foi que afrontei o suplício e afrontei o próprio Deus, renegando-o!… Entretanto, quando me julgava aniquilado para sempre, que terrível despertar… Oh! sim, terrível, cercado de cadáveres, de espectros ameaçadores, os pés atolados em sangue!… Acreditava-me morto, e estou vivo! Horrendo! horrendo! mais horrendo que todos os suplícios da Terra!

15 “Ah! se todos os homens pudessem saber o que há para além da vida, saberiam também quanto custam as consequências do mal! Certo não haveria mais assassínios, nem criminosos, nem malfeitores! Eu só quisera que todos os assassinos pudessem ver o que eu vejo e sofro… Oh! então não mais o seriam, porque é horrível este sofrimento!

16 “Bem sei que o mereci, oh! meu Deus, porque também eu não tive compaixão das minhas vítimas; repelia as mãos súplices quando imploravam que as poupasse… Sim, fui cruel, decerto, matando-as covardemente para roubá-las! E fui ímpio, e fui blasfemo também, renegando o vosso sacratíssimo Nome… 17 Quis enganar-me, porque eu queria persuadir-me de que Vós não existíeis… Meu Deus, eu sou grande criminoso! Agora o compreendo. Mas… não tereis piedade de mim?… Vós sois Deus, isto é, a bondade, a misericórdia! Sois onipotente!

18 “Piedade, Senhor! Piedade! Eu vo-lo peço, não sejais inexorável; libertai-me destes olhares odiosos, destes espectros horríveis… deste sangue… das minhas vítimas… olhares que, quais punhaladas, me varam o coração.

19 “Vos outros que aqui estais, que me ouvis, sede bondosos, almas caritativas. Sim, eu o vejo, sei que tendes piedade de mim, não é verdade? Haveis de orar por mim… Oh! eu vo-lo suplico, não me abandoneis como fiz outrora aos outros. Pedireis a Deus que me tire este horrível espetáculo de ante os olhos, e Ele vos ouvirá porque sois bons… Imploro, orai por mim.”

20 Os assistentes, sensibilizados, dirigiram-lhe palavras de conforto e consolação. 21 Deus, disseram-lhe, não é inflexível; apenas exige do culpado um arrependimento sincero, aliado à vontade de reparar o mal praticado. 22 Uma vez que o vosso coração não está petrificado e que lhe pedis o perdão dos vossos crimes, a sua misericórdia baixará sobre vós. Preciso é, pois, que persevereis na boa resolução de reparar o mal que fizestes. 23 Certo, não podeis restituir às vítimas as vidas que lhes arrancastes, mas, se o impetrardes com fervor, Deus permitirá que as encontreis em uma nova encarnação, na qual lhes podereis patentear tanto devotamento quanto o mal que lhes fizestes; e quando a reparação lhe parecer suficiente, para logo entrareis na sua santa graça. 24 Assim, a duração do vosso castigo está nas vossas mãos, dependendo de vós o abreviá-lo. Comprometemo-nos a auxiliar-vos com as nossas preces e invocar para vós a assistência dos bons Espíritos. 25 Vamos pronunciar em vossa intenção a prece que se contém em O Evangelho segundo o Espiritismo, referente aos Espíritos sofredores e arrependidos. 26 Não pronunciaremos a que se refere aos maus Espíritos, porque desde que vos arrependeis, que implorais, que renunciais ao mal, não passais para nós de um Espírito infeliz e não mau.

27 Feita essa prece, o Espírito continua, depois de breves instantes de calma:

“Obrigado, meu Deus!… Oh! obrigado! Tivestes piedade de mim… Eis que se afastam os espectros… Não me abandoneis, enviai-me os vossos bons Espíritos para me sustentarem… Obrigado…”

28 Depois desta cena o médium fica alquebrado, abatido, os membros lassos por algum tempo. A princípio, apenas tem vaga ideia do que se há passado, mas pouco a pouco vai-se lembrando de algumas das palavras que pronunciou sem querer, reconhecendo que não era ele quem falara.

29 No dia seguinte, em nova reunião, o Espírito tornou a manifestar-se, reencetando a cena da véspera, porém por minutos apenas, e isso com a mesma gesticulação expressiva, posto que menos violenta. Depois, tomado de agitação febril, escreveu:

30 “Grato às vossas preces. Experimento já uma sensível melhora. Foi tal o fervor com que orei que Deus me concedeu um momentâneo alívio; não obstante, terei de ver ainda as minhas vítimas… Hei-las! Hei-las! Vedes este sangue?…”

31 (Repetiu-se a prece da véspera.  ( † ) O Espírito continua dirigindo-se ao médium):

“Perdoai o ter-me apossado de vós. Obrigado pelo alívio que proporcionais aos meus sofrimentos. Perdoai o mal que vos causei, mas eu tenho necessidade de me comunicar, e só vós o podeis…

32 “Obrigado! obrigado! que já sinto algum alívio, posto não tenha atingido o fim das provações. As minhas vítimas voltarão dentro em breve. Eis a punição a que fiz jus, mas, Deus meu, sede indulgente.

“Orai todos vós por mim, tende piedade.”

Latour


33 Um membro da Sociedade Espírita de Paris, que tinha orado por este infeliz, evocando-o, obteve intervaladamente as seguintes comunicações:


I.


34 Fui evocado quase imediatamente depois da minha morte, porém não pude manifestar-me logo, de modo que muitos Espíritos levianos tomaram-me o nome e a vez. 35  Aproveitei a estada em Bruxelas do Presidente da Sociedade de Paris, e comuniquei-me, com a aquiescência de Espíritos superiores.

36 Voltarei a manifestar-me na Sociedade, a fim de fazer revelações que serão um começo de reparação às minhas faltas, podendo também servir de ensinamento a todos os criminosos que me lerem e meditarem na exposição dos meus sofrimentos.

37 É somente sobre o Espírito dos homens fracos ou das crianças que a narrativa de penas infernais pode produzir efeitos terroristas. 38 Ora, um grande malfeitor não é um Espírito pusilânime, e o temor de um polícia é para ele mais real que a descrição dos tormentos do inferno. 39 Eis por que todos os que me lerem ficarão comovidos com as minhas palavras e com os meus padecimentos, que não são suposições. 40 Não há um só padre que possa dizer: “Eu vi o que dizeis, eu assisti às torturas dos danados.” 41 Mas, quando eu vier dizer: “Eis o que se passou após a minha morte, a morte do corpo; eis a minha enorme decepção ao reconhecer-me vivo, ao contrário do que supunha e tinha tomado pelo termo dos suplícios, quando era o começo de outras torturas, aliás indescritíveis!” — então, mais de um ser estará à borda do precipício em que ia despenhar-se, e cada um dos infelizes, desviados por mim da senda criminosa, concorrerá para o resgate das minhas faltas. 42 É assim que o bem sobressai do mal e que a bondade de Deus se manifesta em tudo, sobre a Terra como no Espaço.

43 Foi-me permitido libertar-me do olhar das minhas vítimas transformadas em carrascos, a fim de comunicar convosco; 44 ao deixar-vos, entretanto, tornarei a vê-las e só esta ideia me causa tal sofrimento que eu não poderia descrevê-lo. 45 Sou feliz quando me evocam, porque assim deixo o meu inferno por alguns instantes. Orai sempre ao Senhor por mim, pedi-lhe que me liberte do olhar das minhas vítimas.

46 Sim, oremos juntos. A prece faz tanto bem… Estou mais aliviado; não sinto tão pesado o fardo que me acabrunha. Vejo um resquício de esperança luzindo-me aos olhos e, contrito, exclamo: Bendita a mão do Senhor e seja feita a sua vontade!


II.


O MÉDIUM. — Em vez de pedir a Deus para vos furtar ao olhar das vossas vítimas, eu vos convido a pedir comigo para que vos dê a força necessária a fim de suportardes essa tortura expiatória.

2 LATOUR. — Eu preferiria livrar-me de tais olhares. Se soubésseis o quanto sofro… O homem mais insensível comover-se-ia vendo impressos na minha fisionomia, como que a fogo, os sofrimentos de minha alma. Farei, entretanto, o que me aconselhais, pois compreendo ser esse um meio de expiar um pouco mais rapidamente as minhas faltas. É qual dolorosa operação que viesse curar um corpo gravemente adoentado.

3 Ah! Pudessem ver-me os culpados da Terra, e ficariam apavorados das consequências de seus crimes, desses crimes que, ignorados dos homens, são, no entanto, vistos pelos Espíritos. 4 Como a ignorância é fatal para tantas pessoas!

5 Que responsabilidade assumem os que recusam instrução às classes pobres da sociedade! Acreditam que com polícia e soldados se previnem crimes… Que grande erro!


III.


Terríveis são os meus sofrimentos, porém, depois que por mim orais, sinto-me confortado por bons Espíritos, os quais me dizem tenha esperança. 2 Compreendo a eficácia do remédio heroico que me aconselhastes e peço a Deus me dê forças para suportar esta dura expiação, aliás igual, posso afirmá-lo, ao mal que fiz. 3 Não quero escusar-me das minhas atrocidades; mas o certo é que, para nenhuma das minhas vítimas, salvo a precedência de alguns instantes, na morte, a dor não existia, e as que tinham terminado a provação terrena foram receber a recompensa que as aguardava. Para mim, entretanto, ao voltar ao mundo dos Espíritos, só houve sofrimentos infernais, excetuados os curtos instantes em que me manifestava.

4 Em que pesem aos seus quadros terroristas, os padres só têm uma fraca noção dos verdadeiros sofrimentos que a justiça divina reserva aos infratores da lei do amor e da caridade. 5 Como insinuar a pessoas sensatas que uma alma, isto é, uma coisa imaterial, possa sofrer ao contato do fogo material? É absurdo, e por isso tantos e tantos criminosos se riem desses painéis fantásticos do inferno. 6 O mesmo porém não se dá quanto à dor moral do condenado, após a morte física. Orai para que o desespero não se aposse de mim.


IV.


Muito grato vos sou pela perspectiva que me trouxestes e a cujo fim glorioso sei que devo chegar quando purificado. Sofro muito, mas parece-me que os sofrimentos diminuem. 2 Não posso acreditar que, no mundo dos Espíritos, a dor diminua pouco a pouco à força de hábito. Não. O que eu depreendo é que as vossas preces salutares me aumentaram as forças, de modo que, pelas mesmas dores, com mais resignação, eu menos sofro.

3 O pensamento se me volve então para a última existência e vejo as faltas que teria conjurado se soubesse orar. 4 Hoje compreendo a eficácia da prece; compreendo o valor dessas mulheres honestas e piedosas, fracas pela carne, porém fortes pela fé; compreendo, enfim, esse mistério ignorado pelos supostos sábios da Terra. 5 Preces! palavra que por si só provoca o riso dos espíritos fortes. Aqui os espero no mundo espiritual, e, quando a venda que encobre a verdade se romper para eles, então, a seu nuto se prosternarão aos pés do Eterno a quem desprezaram e serão felizes em se humilhar para que seus pecados e crimes sejam revelados! Hão de compreender então a virtude da prece.

6 Orar é amar, e amar é orar! 7 E eles amarão o Senhor e lhe dirigirão preces de reconhecimento e de amor, regenerados pelo sofrimento. E, pois que devem sofrer, pedirão como eu peço a força necessária ao sofrimento e à expiação. Em deixando de sofrer, hão de orar ainda para agradecer o perdão merecido por sua submissão e resignação. 8 Oremos, irmão, para que mais me fortaleça…

9 Oh! obrigado à tua caridade, meu irmão, pois que estou perdoado. Deus me liberta do olhar das minhas vítimas. Oh! meu Deus! Bendito sejais vós por toda a eternidade, pela graça que me concedeis! 10 Oh! meu Deus! Sinto a enormidade dos meus crimes e curvo-me ante a vossa onipotência. Senhor! eu vos amo de todo o meu coração e vos suplico a graça de me permitirdes, ao vosso arbítrio, sofrer novas provações na Terra; voltar a ela como missionário da paz e da caridade, ensinando as crianças a pronunciar com respeito o vosso nome. Peço-vos que me seja possível ensinar que vos amem, a vós, Pai que sois de todas as criaturas. 11 Obrigado, meu Deus! Sou um Espírito arrependido, e sincero é o meu arrependimento. Tanto quanto meu impuro coração pode comportá-lo, eu vos amo com esse sentimento que é pura emanação da vossa divindade. 12 Irmão, oremos, pois meu coração transborda de reconhecimento. Estou livre, quebrei os grilhões, não sou mais um réprobo. Sou um Espírito sofredor, mas arrependido, a desejar que o meu exemplo pudesse conter nos umbrais do crime todas as mãos criminosas que vejo prestes a levantarem-se. 13 Oh! para trás, recuai irmãos, pois as torturas que preparais serão atrozes! Não acrediteis que o Senhor se deixará tão prontamente submeter à prece dos seus filhos. São séculos de torturas que vos esperam.


14 O guia do médium: — Dizes que não compreendes as palavras do Espírito. Procura ter uma ideia da sua emoção e do seu reconhecimento para com o Senhor, coisas que ele acredita não poder testemunhar melhor do que tentando demover todos esses criminosos por ele vistos, mas que tu não podes ver. 15 Aos ouvidos desses, quereria ele que chegassem as suas palavras; mas o que te não disse ele, porque o ignora ainda, é que lhe será permitido o início de missões reparadoras. Irá para junto dos que lhe foram cúmplices, procurando inspirar-lhes arrependimento, implantando em seus corações o gérmen do remorso. 16 Frequentemente se veem na Terra pessoas, tidas por honestas, lançarem-se aos pés de um sacerdote para se acusarem de um crime. É o remorso quem lhes dita a confissão da culpa. 17 Pois se o véu que te encobre o mundo invisível se desfizesse, verias muitas vezes o Espírito cúmplice ou instigador de um crime, tal como o fará Jacques Latour, inspirando o remorso ao Espírito encarnado, no afã de reparar a própria falta.

Teu guia protetor.


[V.]


Mais tarde, o médium de Bruxelas, o mesmo que recebera o primeiro ditado, obteve o seguinte:


2 “Nada mais receeis de mim, que estou tranquilo, em que pese ao sofrimento que ainda tenho. Vendo o meu arrependimento, Deus teve compaixão de mim. 3 Agora sofro por causa desse arrependimento, que me demonstra a enormidade dos meus crimes.

4 “Bem aconselhado na vida, eu não teria jamais praticado todo esse mal, mas, sem repressão, obedeci cegamente aos meus instintos. 5 Se todos os homens pensassem mais em Deus, ou, antes, se nele acreditassem, tais faltas não seriam cometidas.

6 “Falha é, porém, a justiça dos homens; uma falta muita vez passageira leva o homem ao cárcere, que não deixa de ser um foco de perversão. Daí sai ele completamente corrompido pelos maus exemplos e conselhos. 7 Dado porém que a sua índole seja boa e forte para se não corromper, ainda assim, de lá saído, ele vai encontrar fechadas todas as portas, retraídas todas as mãos, indiferentes todos os corações! 8 Que lhe resta pois? O desprezo, a miséria, o abandono e o desespero, se é que o assistem boas resoluções de se corrigir. Então a miséria o leva aos extremos, e assim é que também ele se toma de desprezo por seu semelhante, assim é que o odeia e perde a noção do bem e do mal, por isso que repelido se encontra, a despeito das suas boas intenções. Para angariar o necessário, rouba, mata às vezes, e depois… depois o executam!

9 “Meu Deus, ao ser presa novamente das minhas alucinações, sinto que a vossa mão se estende por sobre mim; sinto que a vossa bondade me envolve e protege. 10 Obrigado, meu Deus! na próxima existência empregarei toda a minha inteligência no socorro aos infelizes que sucumbiram, a fim de os preservar da queda.

11 “Obrigado a vós que não desdenhais de comunicar comigo; nada receeis, pois bem vedes que eu não sou mau. 12 Quando pensardes em mim, não vos figureis o meu retrato pelo que de mim vistes, mas o de uma alma angustiada que agradece a vossa indulgência.

13 Adeus; evocai-me ainda e orai a Deus por mim.

Latour.


VI. — Estudo sobre o Espírito de Jacques Latour.


Não se pode desconhecer a profundeza e a alta significação de algumas das frases encerradas nessa comunicação. Além disso, ela oferece um dos aspectos do mundo dos Espíritos em castigo, pairando ainda assim sobre ele a misericórdia divina. 2 A alegoria mitológica das Eumênides não é tão ridícula como parece, e os demônios, carrascos oficiais do mundo invisível, que as substituem perante as modernas crenças, são menos racionais com seus cornos e forcados, do que estas vítimas que servem elas próprias ao castigo do culpado.

3 Admitindo-se a identidade deste Espírito, talvez se estranhe tão pronta mudança do seu moral. É o caso da ponderação já feita, de que pode um Espírito brutalmente mau ter em si melhores predicados do que o dominado pelo orgulho ou pela hipocrisia. 4 Esta reversão a sentimentos mais benéficos indica uma natureza mais selvagem que perversa, à qual apenas faltava boa direção. 5 Comparando esta linguagem com a de outro Espírito, adiante consignada sob a epígrafe: Castigo pela luz, é fácil concluir qual dos dois seja mais adiantado moralmente, apesar da disparidade de instrução e hierarquia social, obedecendo um ao natural instinto de ferocidade, a uma espécie de superexcitação, ao passo que o outro empresta à perpetração dos seus crimes a calma e sangue-frio inerentes às lentas e obstinadas combinações, afrontando ainda depois de morto o castigo, por orgulho. Este sofre e não o confessa, ao passo que aquele prontamente se submete. Também por aí podemos prever qual deles sofrerá por mais tempo.

6 “Eu sofro por causa desse arrependimento, que me demonstra a extensão dos meus crimes.”  ( † ) Aí está um pensamento profundo. 7 O Espírito só compreende a gravidade dos seus malefícios depois que se arrepende; 8 o arrependimento acarreta o pesar, o remorso, o sentimento doloroso, que é a transição do mal para o bem, da doença moral para a saúde moral. 9 É para se furtarem a isso que os Espíritos perversos se revoltam contra a voz da consciência, quais doentes a repelirem o remédio que os há de curar; e assim procuram iludir-se, aturdir-se e persistir no mal. 10 Latour chegou a esse período no qual se extingue o endurecimento, acabando por ceder. Entra-lhe o remorso pelo coração, o arrependimento o assedia, e, compreendendo o mal que fez, vê a sua degradação e sofre dela. Eis por que ele diz:  ( † ) “Sofro por causa desse arrependimento.” 11 Na precedente encarnação, ele devia ter sido pior que na última, visto que, se se tivesse arrependido como agora, melhor lhe teria sido a vida subsequente. 12 As resoluções, por ele ora tomadas, influirão sobre a sua vida terrestre no futuro; e a encarnação que teve nem por ser criminosa deixou de assinalar-lhe um estádio de progresso. 13 E é muito provável que antes de a iniciar ele fosse na erraticidade um desses muitos Espíritos rebeldes, obstinados no mal, como se veem tantos.

14 A muitas pessoas ocorre perguntar qual seja o proveito dessa anterioridade de existência, desde que dela nos não lembramos e nem temos ideia do que fomos nem do que fizemos.

15 Esta questão está assim liquidada pela razão de que tal lembrança seria inútil, visto como de todo apagado o mal cometido, sem que dele nos reste um traço no coração, também com ele não nos devemos preocupar. 16 Quanto aos vícios de que porventura não estejamos inteiramente despojados, nós os conhecemos pelas nossas tendências atuais, e para elas é que devemos voltar todas as atenções. 17 Basta saber o que somos, sem que seja necessário saber o que fomos.

18 Se considerarmos as dificuldades que há na existência para a reabilitação do Espírito, por maior que seja o seu arrependimento, as reprovações de que se torna objeto, devemos louvar a Deus por ter cerrado esse véu sobre o passado. 19 Condenado a tempo ou absolvido que fosse, os antecedentes de Latour fá-lo-iam um enjeitado da sociedade. 20 Quem o acolheria com intimidade, apesar do seu arrependimento? Entretanto, as intenções que ora patenteia, como Espírito, nos dão a esperança de que venha a ser na próxima encarnação um homem honesto e estimado. Suponhamos que soubessem que esse homem honesto fora Latour, e a reprovação continuaria a persegui-lo. 21 Esse véu sobre o passado é que lhe franqueia a porta da reabilitação, porque pode sem receio e sem pejo ombrear-se com os mais honestos. 22 Quantos há que desejariam poder apagar da memória de outrem certas fases da própria vida?

23 Qual a doutrina que melhor se concilia com a bondade e justiça de Deus? Demais, esta doutrina não é uma teoria, porém o resultado de observações. 24 Por certo não foram os Espíritos que a imaginaram, porém eles viram e observaram as situações diferentes que muitos Espíritos apresentam, e daí o procurarem explicá-las, originando-se então a doutrina. 25 Aceitaram-na, pois, como resultante dos fatos, e ainda por lhes parecer mais racional que todas as emitidas até hoje relativamente ao futuro da alma.

26 Não se pode recusar a estas comunicações um grande fundo moral. O Espírito poderia ter sido auxiliado nesses raciocínios e, sobretudo, na escolha das suas expressões, por outros mais adiantados; mas o fato é que estes apenas influem na forma, que não na essência, e jamais fazem que o Espírito inferior esteja em contradição consigo mesmo. 27 Assim é que em Latour poderiam ter poetizado a forma do arrependimento, mas não lho insinuaram contra sua vontade, porque o Espírito tem o seu livre arbítrio; 28 em Latour lobrigaram o gérmen dos bons sentimentos e por isso o auxiliaram a exprimir-se, contribuindo assim para desenvolvê-lo, ao mesmo tempo que em seu favor imploravam comiseração.

29 Que há de mais digno, mais moralizador, capaz de impressionar mais vivamente, do que o espetáculo deste grande criminoso exprobrando-se a si mesmo o desespero e os remorsos? Desse criminoso que, perseguido pelo incessante olhar de suas vítimas e torturado, eleva a Deus o pensamento implorando misericórdia? 30 Não será isso um exemplo salutar para os culpados? Posto que simples e desprovidos de fantasmagóricas encenações, compreende-se a natureza dessas angústias, porque elas, apesar de terríveis, são racionais.

31 Poder-se-ia talvez estranhar tão grande transformação num homem como Latour… Mas por que havia de ser inacessível ao arrependimento? Por que não possuir também ele a sua corda sensível? 32 O pecador seria, pois, votado ao mal eternamente? Não lhe chegaria, por fim, um momento em que a luz se lhe fizesse na alma? Era justamente essa hora que chegara para Latour. 33 E ali está precisamente o lado moral dos seus ditados; é a compreensão que ele tem do seu estado, são os seus pesares, os seus planos de reparação, que tornam tais mensagens eminentemente instrutivas. 34 Que haveria de extraordinário se Latour confessasse um arrependimento sincero antes da morte, se dissesse antes da morte o que veio dizer depois? Não há, quanto a isso, inúmeros exemplos?

35 Uma regeneração antes da morte passaria, aos olhos do maior número dos seus iguais, por fraqueza; mas essa voz de além-túmulo é seguramente a revelação daquilo mesmo que os aguarda. 36 Ele está em absoluto com a verdade, quando afirma  ( † ) ser o seu exemplo mais eficaz que a perspectiva das chamas do inferno, e até do cadafalso. 37 Por que não lhes ministrar esses sentimentos no cárcere? Eles fariam refletir, do que aliás já temos alguns exemplos. 38 Mas como crer nas palavras de um morto, quando ninguém acredita que para além da morte não esteja tudo acabado? 39 Entretanto, dia virá em que se reconheça esta verdade, que os mortos podem vir instruir os vivos.

40 Outras muitas instruções importantes se podem tirar dessas comunicações; assim, a confirmação deste princípio de eterna justiça, pelo qual ao culpado não basta o arrependimento apenas, 41 sendo este o primeiro passo para a reabilitação que atrai a divina misericórdia; o arrependimento é o prelúdio do perdão, o alívio dos sofrimentos, mas porque Deus não absolve incondicionalmente, faz-se mister a expiação, e principalmente a reparação. Assim o entende Latour, e para tanto se predispõe.

42 Se compararmos este criminoso àquele de Castelnaudary, veremos ainda uma diferença nos castigos. Naquele o arrependimento foi tardio, e, consequentemente, mais longa a pena. Além disso, essa pena era quase material, ao passo que para Latour o foi antes moral, porque, como acima dissemos, havia grande diferença intelectual entre eles; ao outro, impunha-se coisa que pudesse ferir-lhe os sentidos obliterados; mas é preciso notar que as penas morais não serão menos pungentes para todo aquele que esteja em condições de compreende-las; podemos inferi-lo dos clamores do próprio Latour, que não são de cólera, mas antes a expressão dos remorsos, de perto seguidos de arrependimento e desejo de reparação, visando o progresso.



[Sob esse título, a Revista Espírita de outubro de 1864 contém mais informações sobre Jacques Latour.]


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