O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano VIII — Agosto de 1865.

(Idioma francês)

Abade Dégenettes, médium.

Antigo cura de Notre-Dame des Victories,  †  em Paris.
(Sumário)

1. — O fato seguinte foi tirado textualmente da obra intitulada: Mês de Maria, pelo abade Défossés: n

Eis como se produziu no mundo, de maneira sobrenatural e celeste, a obra divina da arquiconfraria do santíssimo e imaculado Coração de Maria. Deixemos ainda a palavra ao Sr. Dégenettes. ( † ) Quem melhor do que ele poderia contar-nos o que se passou?

“A arquiconfraria nasceu em 3 de dezembro de 1836. Muitas pessoas que só julgam pelas aparências, nos chamam o seu fundador. Não podemos deixar passar este preconceito sem o combater e o destruir; não somos o seu fundador. Só a Deus a honra e a glória. Não tínhamos nenhuma das disposições de espírito nem de coração que nos pudessem preparar para isto. Devemos confessar, pedindo perdão a Deus e a Maria que, embora filho de Maria, habituado desde tenra idade a amá-la, a venerá-la como a mais terna das mães, nada compreendíamos da devoção de seu santo coração, que até evitávamos de nele pensar. Acrescentamos ainda que um santo religioso, o Padre Maccarty, tendo pregado um dia em nossa igreja das missões estrangeiras sobre o santo coração de Maria, não recolhemos de seu sermão nenhum sentimento que desse o nosso sufrágio ordinário à eloquência do pregador, mas só desgosto, tão grande era o orgulho de nossa prevenção, por ter ele tratado de um assunto que pensávamos não ser mais útil aos outros do que a nós. Tal foi nossa disposição constante até o dia 3 de dezembro de 1836, festa de São Francisco Xavier.

“Naquele dia, às nove horas da manhã, eu começava a santa missa ao pé do altar da santa Virgem, que depois consagramos ao seu santíssimo e imaculado Coração, e que é hoje o altar da arquiconfraria. Eu estava no primeiro versículo do salmo Judica me, [Salmo 42] quando um pensamento veio apoderar-se de meu espírito: era o pensamento da inutilidade de meu ministério nessa paróquia; ele não me era estranho e eu tinha muitas ocasiões de o conceber e de o recordar; mas naquela circunstância ele me feriu mais vivamente que de ordinário. Como não era o lugar nem o tempo para dele me ocupar, fiz todos os esforços possíveis para o afastar de meu espírito. Não tive sucesso e parecia-me sempre ouvir uma voz, que vinha de meu íntimo e me dizia: Nada fazes, teu ministério é nulo. Vê, estás aqui há quatro anos; que ganhaste? Tudo está perdido, este povo não tem mais fé. Por prudência deverias retirar-te!…

“A despeito de todos os meus esforços para repelir este pensamento infeliz, ele se obstinou de tal modo que absorveu todas as faculdades de meu espírito, a ponto de eu ler e recitar preces sem mais compreender o que dizia. A violência que eu me tinha feito me havia fatigado e eu experimentava uma transpiração das mais abundantes. Fiquei nesse estado até o começo do cânone da missa. Depois de haver recitado o Sanctus, parei um instante, procurando restabelecer minhas ideias; aterrorizado com o estado de meu espírito, disse-me: “Meu Deus, em que estado estou? Como vou oferecer o divino sacrifício? Não tenho bastante liberdade de espírito para consagrar. Ó meu Deus, livrai-me desta distração.” Tão logo proferi estas palavras, ouvi distintamente estas outras, pronunciadas de maneira solene: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria. Mal ouvidas estas palavras, que não me feriam os ouvidos, mas apenas ressoavam dentro de mim, recobrei imediatamente a calma e a liberdade de espírito. A fatal impressão que me tinha agitado tão violentamente logo se apagou e dela não me restou nenhum traço. Dei seguimento aos santos mistérios sem nenhuma lembrança de minha precedente distração.

“Após minha ação de graças, examinei a maneira pela qual tinha oferecido o santo sacrifício. Só então me lembrei de que tivera uma distração, embora não passasse de uma lembrança confusa e, por alguns instantes, vi-me obrigado a pesquisar qual teria sido o seu objeto. Tranquilizei-me, dizendo: “Não pequei; eu não estava livre.” Perguntei-me como essa distração havia cessado e a lembrança das palavras que ouvira se me apresentou ao espírito. Esse pensamento me feriu com uma espécie de terror. Procurei negar a possibilidade do fato, mas minha memória confundia os raciocínios que eu me objetava. Batalhei comigo mesmo durante dez minutos. Dizia de mim para mim: Se parasse nisto, expor-me-ia a uma grande desgraça; ela afetaria meu moral e eu poderia tornar-me visionário.

“Fatigado por esse novo combate, tomei meu partido e disse: Não posso deter-me nesse pensamento; ele teria consequências deploráveis; aliás, é uma ilusão; tive uma longa distração durante a missa, eis tudo. O essencial para mim é não ter pecado. Não quero mais pensar nisto. Apoiei as mãos no genuflexório sobre o qual estava ajoelhado. No mesmo instante, e ainda não me tinha levantado (estava só na sacristia), ouvi pronunciar bem distintamente: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria. Torno a cair de joelhos e minha primeira impressão foi um momento de estupefação. Eram as mesmas palavras, o mesmo som, a mesma maneira de as ouvir. Durante alguns instantes tentei não acreditar; ao menos queria duvidar e não o podia mais. Eu tinha ouvido, não podia ocultá-lo a mim mesmo. Um sentimento de tristeza tomou conta de mim; as inquietudes que acabavam de atormentar o meu espírito apresentaram-se de novo. Em vão tentei expulsar todas essas ideias; eu me dizia: É ainda uma ilusão, fruto do abalo dado em teu cérebro pela primeira impressão que ressentiste; não ouviste, não pudeste ouvir, mas o sentido íntimo me dizia: Não podes duvidar; ouviste duas vezes.

“Tomei a decisão de não me ocupar com o que acabava de acontecer, de tentar esquecer. Mas estas palavras: Consagra tua paróquia ao santíssimo e imaculado Coração de Maria, se me apresentavam incessantemente ao espírito. Para me livrar da impressão que me fatigava, cedi exausto e me disse: É sempre um ato de devoção à santa Virgem, que pode ter um bom efeito; tentemos. Meu consentimento não era livre; era exigido pela fadiga do meu espírito. Entrei em meu apartamento. Para me livrar desse pensamento, pus-me a compor o estatuto de nossa associação. Tão logo pus mãos à obra o assunto se esclareceu aos meus olhos e os estatutos não tardaram a ser redigidos. Eis a verdade, e não a dissemos nas primeiras edições de nosso manual; até a ocultamos ao venerável diretor de nossa consciência. Até aquele dia a mantínhamos em segredo, mesmo para os amigos mais íntimos; não ousávamos desvendá-lo; e hoje que a divina misericórdia assinalou tão autenticamente sua obra pelo estabelecimento, pela prodigiosa propagação da arquiconfraria e, sobretudo, pelos frutos admiráveis que ela produz minha consciência me obriga a revelar este fato. É glorioso — dizia o arcanjo Rafael a Tobias — é glorioso revelar as obras de Deus, a fim de que todos reconheçam que só a ele pertencem louvor, honra e glória.”


2. — O fato de mediunidade auditiva é aqui extremamente evidente. A quem negasse que seja um efeito mediúnico e o considerasse como miraculoso, responderíamos que o caráter do milagre é de ser excepcional e acima das leis da Natureza, e que jamais se pensou em dar essa qualidade aos fenômenos que se produzem diariamente; a reprodução é indício certo de que existem em virtude de uma lei e que, por conseguinte, não saem da ordem natural. Ora, os fatos análogos ao do abade Dégenettes estão no número dos mais vulgares, entre os da mediunidade; as comunicações por via auditiva são excessivamente numerosas.

Se, pois, conforme a opinião de alguns, o demônio é o único agente dos efeitos mediúnicos, seria de concluir, para ser consequente, que a fundação da dita arquiconfraria é uma obra do demônio, porquanto, em boa lógica, a analogia absoluta dos efeitos implica a da causa.

Um ponto muito embaraçoso para os partidários do demônio é a reprodução incessante de todos os fenômenos mediúnicos no seio do próprio clero e das comunidades religiosas, e a perfeita similitude de uma porção de efeitos considerados santos, com os que são reputados diabólicos. Assim, forçoso é convir que os maus Espíritos não são os únicos com o poder de manifestar-se, pois, do contrário, a maioria dos santos não passariam de possessos, considerando-se que muitos só deveram sua beatificação a fatos do gênero dos que hoje se produzem entre os médiuns. Eles se safam da dificuldade dizendo que os bons Espíritos só se comunicam à Igreja, ou que só à Igreja cabe distinguir o que vem de Deus ou do diabo. Seja; é uma razão como qualquer outra, que fica para a apreciação de cada um, mas que exclui a doutrina da comunicação exclusiva dos demônios.


3. — Nosso colega Sr. Delanne, que houve por bem nos transmitir o fato acima, juntou a comunicação seguinte, do abade Dégenettes, obtida pela Sra. Delanne:

“Meus caros filhos, respondo com alegria ao vosso apelo; darei de bom grado os detalhes que desejais conhecer, porque hoje estou ligado à grande falange dos Espíritos que têm por missão conduzir os homens no caminho da verdade.

“Quando eu estava na Terra, trabalhava de corpo e alma para reconduzir os homens a Deus, mas tinha apenas uma ideia muito fraca da importância desta grande lei, pela qual todos os homens chegarão ao progresso. A matéria impõe graves entraves, e nossos instintos muitas vezes paralisam os esforços de nossa inteligência. Quando, pois, de minha audição, eu não sabia bem em que pensar; mas vendo que a voz continuava a fazer-se ouvir, conclui por um milagre. Apesar disso, considerava-me como um verdadeiro instrumento, e tudo quanto obtive por esta intercessão me confirmava essa ideia. Pois bem! de fato eu tinha sido um instrumento; mas não havia milagre; eu era um dos homens designados para trazer uma das primeiras pedras à doutrina, fornecendo a prova das comunicações espirituais.

“Estão próximos os tempos em que vos serão dados grandes desenvolvimentos concernentes às coisas chamadas mistérios, e que deviam sê-lo até o presente, porque os homens ainda não estavam aptos a compreendê-las. Oh! mil vezes feliz os que hoje compreendem esta bela e invejável missão de propagar a doutrina da revelação e mostrar um Deus bom e misericordioso!

“Sim, meus caros filhos, quando eu estava exilado na Terra possuía o precioso dom da mediunidade; mas, eu vo-lo repito, não sabia me dar conta disto. A partir do momento em que aquela voz falou ao meu coração, reconheci mais especialmente e mais visivelmente a proteção de Maria em todas as minhas ações, mesmo as mais simples, e se ocultei aos meus superiores o que antes se havia passado comigo, ainda foi pelos conselhos dessa mesma voz que me fazia compreender que não havia chegado a hora de fazer aquela revelação. Eu tinha o pressentimento e como uma vaga intuição da renovação que se opera; compreendia que a revelação não devia vir da Igreja, mas que um dia a Igreja seria forçada a apoiá-la por todos os fatos a que dá o nome de milagre e que atribui a causas sobrenaturais.

“Continuarei de outra vez, meus filhos. Que a paz do Senhor esteja em vossas almas e vos proporcione um sono tranquilo.


P. — Devemos enviar ao Sr. Allan Kardec esta comunicação e os fatos que a provocaram?

Resposta. — Eu não vos disse que era um dos propagadores da doutrina? Meu nome não tem grande valor, mas não vejo por que não vos autorizaria a fazê-lo. Aliás, não é a primeira vez que me comunico; podeis, pois, transmitir ao mestre minhas simples instruções, ou, antes, meus simples relatos.


Dégenettes.”


Observação. – Com efeito, o Abade Dégenettes comunicou-se várias vezes, espontaneamente, e ditou palavras dignas da elevação de seu Espírito.

Tanto quanto nos lembramos, foi ele que, num sermão pregado na igreja de Notre-Dame des Victoires,  †  contou o seguinte fato [v. Os agêneres]: Uma pobre operária sem trabalho veio orar na igreja. Ao sair encontrou um senhor que a abordou e lhe disse: “Buscai trabalho; ide a tal endereço, procurai a Sra. fulana; ela vos conseguirá um.” A pobre mulher agradeceu e se dirigiu ao local indicado, onde realmente encontrou a pessoa em questão, à qual narrou o que acabava de acontecer. A senhora lhe disse: “Não sei quem vos poderia ter dado o meu endereço, porque não pedi empregada. Entretanto, como tenho algo para mandar fazer, vou encarregá-la disto.” A pobre mulher, avistando um retrato no salão, respondeu: “Olhai, senhora, este é o senhor que me mandou à vossa casa”, e apontou o retrato. “Impossível — disse a senhora — esse retrato é de meu filho, morto há três anos.” Respondeu a operária: “Não sei como isto se deu, mas o reconheço perfeitamente.”

O Sr. abade Dégenettes acreditava, pois, na aparição das almas após a morte, com a aparência que tinham em vida. Os fatos deste gênero não são insólitos e deles temos numerosos exemplos. Não é presumível que o abade Dégenettes tivesse relatado este do púlpito sem provas autênticas. Sua crença neste ponto, junta à que lhe chegou pessoalmente, vem em apoio do que ele disse de sua missão atual, de propagar a Doutrina dos Espíritos.

Um fato como o último referido deveria necessariamente passar por maravilhoso. Só o Espiritismo, pelo conhecimento das propriedades do perispírito, poderia dar-lhe uma explicação racional. Prova, por isto mesmo, a possibilidade da aparição do Cristo aos apóstolos, após a sua morte.



[1] [DESFOSSÉS (l’abbé Gustave), né en 1816. — Manuel des enfants (le Marie. Ouvrage extrait des œuvres de M. Desgenettes, et contenant l’exposition complète de toutes les indulgences, par l’abbé G. Desfosses. In-18. 1861. Sarlit. 3 fr. — Mois de Marie de Notre-Dame des Victoires. In-18. 1861. liuffel. 1 fr. 50 c. — Nota: M. l’abbé Desfossés a publié les Oeuvres inédites de l’abbé Dufriche Desgenettes. —  Mois de Marie de Notre-Dame des Victoires ou méditations sur les grandeurs … Par Charles-Éléonore Dufriche Desgenettes — Google Books.]


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