O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano X — Dezembro de 1867.

(Idioma francês)

O Homem frente à História.

Ancianidade da raça humana. n

Na história da Terra, a Humanidade talvez não passe de um sonho; e quando o nosso velho mundo adormecer nos gelos de seu inverno, a passagem de nossas sombras sobre sua face talvez nele não tenha deixado qualquer lembrança. A Terra possui uma história própria, incomparavelmente mais rica e mais complexa que a do homem. Muito tempo antes do aparecimento de nossa raça, durante séculos e séculos, ela foi seguidamente ocupada por habitantes diversos, por seres primordiais, que estenderam sua dominação sucessiva à sua superfície, e desapareceram com as modificações elementares da física do globo.

Num destes últimos períodos, na época terciária, à qual podemos fixar sem medo uma data de várias centenas de milhares de anos, antes de nós, o sítio onde hoje Paris  †  ostenta os seus esplendores era um Mediterrâneo, um golfo do oceano universal, acima do qual apenas se elevaram na França o terreno cretáceo  †  de Troie,  †  Rouen,  †  Tours;  †  o terreno jurássico  †  de Chaumont,  †  Bourges,  †  Niort;  †  o terreno triásico  †  dos Vosges,  †  e o terreno primitivo dos Alpes,  †  do Auvergne  †  e das costas da Bretanha.  †  Mais tarde a configuração mudou. Na época em que ainda viviam o mamute, o urso das cavernas e o rinoceronte de narinas separadas, podia-se ir por terra de Paris a Londres;  †  e talvez esse trajeto fosse efetuado por nossos antepassados daquele tempo, porque havia homens aqui, antes da formação da França geográfica.

Sua vida diferia tanto da nossa quanto a dos selvagens de que nos ocupávamos recentemente. Uns tinham construído suas aldeias sobre palafitas, no meio dos grandes lagos; essas cidades lacustres, comparáveis às dos castores, foram descobertas em 1853, quando, em consequência de uma longa estiagem, os lagos da Suíça baixaram, pondo a descoberto palafitas, utensílios de pedra, de chifre, de ouro e de argila, vestígios inequívocos da antiga habitação do homem; e essas cidades aquáticas não eram uma exceção: só na Suíça foram encontradas mais de duzentas. Conta Heródoto que os Paeonianos  †  habitavam cidades semelhantes sobre o lago Prasias. Cada cidadão que tomava mulher era obrigado a mandar três pedras da floresta vizinha e as fixar no lago. Como o número das mulheres não era limitado, o piso da cidade cresceu depressa. As cabanas estavam em comunicação com a água por um alçapão, e as crianças eram amarradas pelo pé a uma corda, por medo de acidente. Homens, cavalo, gado, viviam juntos, alimentando-se de peixe. Hipócrates relata os mesmos costumes dos habitantes de Phase. Em 1826, Dumont d’Urville descobriu cidades lacustres análogas nas costas da Nova-Guiné.  † 

Outros habitavam as cavernas, as grutas naturais ou construíam um refúgio grosseiro contra os animais ferozes. Hoje se encontram seus ossos misturados aos da hiena, do urso das cavernas, do rinoceronte ticorino. Um cavouqueiro, em 1852, querendo saber a profundidade de um buraco pelo qual os coelhos se esquivavam dos caçadores, em Aurignac  †  (Haute-Garonne), retirou dessa abertura ossos de grande dimensão. Atacando então o flanco do montículo, na esperança de ali encontrar um tesouro, logo se achou em frente de um verdadeiro ossuário. O rumor público, apoderando-se do fato, pôs em circulação relatos de moedeiros falsos, de assassinatos, etc. O prefeito julgou por bem mandar reunir todas as ossadas para as levar ao cemitério; e quando, em 1860, o Sr. Lartet quis examinar esses velhos restos, o coveiro nem mais se lembrava do lugar da sepultura. Não obstante, com o auxílio de raros vestígios que cercavam a caverna, traços de um foco, ossos quebrados para extrair a medula, pode-se assegurar que as três espécies acima referidas viveram nesse ponto da França ao mesmo tempo que o homem. O cão já era companheiro do homem, e sem dúvida foi a sua primeira conquista.

O alimento desses homens primitivos já era muito variado. Pretende um professor que a proporção entre carnívoros e frugívoros era de doze para vinte. Acha o Sr. Florens que eles se nutriam exclusivamente de frutos. Mas a verdade é que, desde o começo, o homem foi onívoro. Os kjokkenmoddings da Dinamarca nos conservam restos de cozinha antidiluviana, provando este fato até a evidência. Já almoçavam ostras e peixes, conheciam o ganso, o cisne, o pato; apreciavam o galo silvestre, o cervo, o cabrito-montês, a rena, que caçavam, dos quais foram encontrados restos trespassados por flechas de pedra. O bisão ou boi primitivo já lhe dava leite; o lobo, a raposa, o cão e o gato lhes serviam de prato principal. As landes, a cevada, a aveia, as ervilhas, as lentilhas lhes davam o pão e os legumes; o trigo só veio mais tarde. As avelãs, as bolotas, as maçãs, as peras, os morangos e as framboesas rematavam essas iguarias dos antigos dinamarqueses. Os suíços da idade da pedra se apoderaram da carne do bisão, do alce e do touro selvagem, tinham domesticado a cabra e a ovelha. A lebre e o coelho eram desdenhados por alguma razão supersticiosa; mas, em compensação, o cavalo já havia tomado lugar em suas refeições. Todas essas carnes eram comidas cruas e fumegantes na origem e, observação curiosa, os antigos dinamarqueses não se serviam, como nós, dos dentes incisivos para cortar, mas segurar, reter e mastigar o alimento, de sorte que esses dentes não eram cortantes, como os nossos, mas achatados, como nossos molares e as duas arcadas dentárias pousavam uma sobre a outra, em vez de se encaixarem.

Nem todos os selvagens primitivos eram nus. Os primeiros habitantes das latitudes boreais, da Dinamarca, da Gália  †  e da Helvécia,  †  tiveram que se garantir contra o frio com agasalhos de peles. Mais tarde pensaram nos ornamentos. O coquetismo, o amor aos enfeites não datam de hoje, senhoras: testemunham esses colares formados com dentes de cão, de raposa e de lobo, atravessados por um furo de suspensão. Mais tarde os grampos para cabelo, os braceletes, os pegadores de bronze se multiplicaram ao infinito, e é surpreendente a variedade e até o bom-gosto dos objetos que serviam à toalete das senhorinhas e dos homens elegantes daquele tempo.

Naquelas idades recuadas, enterravam os mortos sob abóbadas sepulcrais. Os cadáveres eram colocados em posição agachada, os joelhos quase tocando o queixo, os braços cruzados sobre o peito e aproximados da cabeça. Como se observou, é esta a posição da criança no seio materno. Esses homens primordiais certamente o ignoravam, e é por uma espécie de intuição que equiparavam o túmulo a um berço.

Vestígios de idades que se foram, esses grandes túmulos, esses montículos, essas colinas que nos séculos passados eram chamados “túmulos de gigantes” e que serviam de limites invioláveis, são câmaras mortuárias, sob as quais nossos antepassados escondiam seus mortos. Quais eram esses primeiros homens? “Não é apenas por curiosidade, diz Virchow, que perguntamos quem eram esses mortos, se em vida pertenciam a uma raça de gigantes. Essas questões nos interessam. Esses mortos são nossos antepassados, e as perguntas que dirigimos a esses túmulos se ligam igualmente à nossa própria origem. De que raça saímos? De que fonte saiu nossa cultura atual e para onde ela nos conduz?”

Não é preciso remontar à criação para receber algum clarão sobre as nossas origens; do contrário ver-nos-íamos condenados a permanecer sempre numa noite completa a esse respeito. Apenas sobre a data da criação contaram-se mais de 140 opiniões, e da primeira à última não há menos de 3.194 anos de diferença! Acrescentar uma 141ª hipótese não esclareceria o problema. Assim, limitar-nos-emos a esclarecer que, do ponto de vista geológico, o último período da história da Terra, o período quaternário,  †  o que dura ainda hoje, foi dividido em três fases: a fase diluviana, durante a qual houve imensas inundações parciais, e vastos depósitos e acumulações de areia; a fase glaciária, caracterizada pela formação de geleiras e por um maior resfriamento do globo; enfim a fase moderna. Em suma, a importante questão, hoje mais ou menos resolvida, era saber se o homem não data senão desta última época, ou das precedentes.

Ora, agora está comprovado que data no mínimo da primeira, e que os nossos primeiros ancestrais têm direito ao título de fósseis, considerando-se que suas ossadas (o pouco que resta) jazem com as do ursus spelaeus, da hiena e dos felis spelaea, do elephas primigenius, do megacero, etc., numa camada pertencente a uma ordem de vida diferente da ordem atual.

Nessas épocas longínquas reinava uma Natureza muito diferente da que hoje desdobra os seus esplendores em volta de nós; outros tipos de plantas decoravam as florestas e os campos; outras espécies de animais viviam na superfície do solo e nos mares.

Quais foram os primeiros homens que despertaram nesse mundo primordial? Que cidades foram edificadas? Que língua foi falada? Que costumes estiveram em uso? Estas questões ainda estão cercadas para nós de profundo mistério. Mas o de que temos certeza é que ali onde fundamos dinastias e monumentos, várias raças de homens habitaram sucessivamente, durante períodos seculares.

Sir John Lubbock, na obra assinalada no começo deste estudo, demonstrou a ancianidade da raça humana pelas descobertas relativas aos usos e costumes de nossos ancestrais, como Sir Charles Lyell o tinha demonstrado do ponto de vista geológico. Seja qual for o mistério que ainda envolve as nossas origens, preferimos esse resultado ainda incompleto da ciência positiva, às fábulas e aos romances da antiga mitologia.


Camille Flammarion.



[1] Este artigo é tirado dos artigos científicos que o Sr. Flammarion publicou no Siècle. Julgamos por bem reproduzi-lo, primeiro porque sabemos do interesse dos nossos leitores pelos escritos desse jovem sábio, e, além disso, porque, do ponto de vista da Ciência, ele toca em alguns pontos fundamentais da doutrina exposta em nossa obra sobre a Gênese. — Nota da Editora: Ver “Nota explicativa”, p. 527.


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