O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano XII — Novembro de 1869.

(Idioma francês)

Dois Espíritos cegos.

(ESTUDO MORAL.)

Entre os grupos e sociedades espíritas que nos enviam documentos e submetem à nossa apreciação as instruções que lhes são dadas, temos a felicidade de contar a Sociedade de Marselha, que poderia servir de modelo pela gravidade e importância de seus trabalhos e pelo método inteligente e lógico com que procede ao estudo dos problemas espíritas. Seria desejável que todos os centros se comportassem dessa maneira; com isso os espíritas ganhariam seguramente em ciência e dignidade, e a Doutrina em consideração e desenvolvimento.

Consideramos um dever dar a conhecer aos nossos leitores o relato de uma manifestação obtida naquela Sociedade pela mediunidade falante, faculdade que tende hoje a generalizar-se e que se tornará, inegavelmente, para todos os amigos da verdade e do progresso, uma fonte de estudos fecundos em resultados felizes.


(Marselha,  †  setembro de 1869 – Médium falante: Sra. G.).

I. – Um dos guias protetores do grupo traz dois Espíritos sofredores, anunciando-os nestes termos:

“Caros amigos, trago-vos dois cegos; ouvi-os atentamente e acolhei-os com simpatia. Deixo-vos por alguns instantes para lhes ceder o lugar, mas em breve voltarei para concorrer à vossa instrução.”


Brunat.


Tão logo se retirou o Espírito de Brunat, a fisionomia do médium muda bruscamente e anuncia a chegada de um Espírito sofredor. Este último toma a palavra e diz:

“Onde estou, meu Deus? Qual é a minha situação? É permitido sofrer como sofro? e, contudo, que fiz? Não fiz muito o bem, é certo, mas não pratiquei o mal!… Ó vós que me escutais, sabei quão cruéis são os meus sofrimentos!… Fui arrancado subitamente da Terra quando menos esperava, deixando, nesse mundo que lamento tão amargamente, uma mulher que eu adorava.

“Não sei há quanto tempo estou errando; mas se passaram muitos dias até que eu compreendesse que estava morto. Alguns dias, vários anos? nada sei; mas me parece que suportei os sofrimentos de toda uma eternidade. Ligado ao corpo por laços poderosos, senti os vermes corroendo-me a carne; sofri todas as torturas da putrefação. Por isso, bem compreendo hoje que estou morto. Mas, ai! eu sou cego… Assim, chego ao vosso meio conduzido por não sei quem, impelido por não sei o quê! Sou um pobre infeliz que não vê mais e que ainda encontra, às apalpadelas, os lugares que lhe são familiares; mas, enquanto o cego sabe que é conduzido por seu cão, embora não o veja, eu nada sei. – Oh! como é penoso sofrer assim, procurar sem cessar e jamais encontrar!…

“Como vos disse, deixei na Terra um ser que eu amava; é minha mulher. Desde que a morte me fulminou, não deixei de procurá-la, mas ainda não pude encontrá-la. Em que se tornou?… Quantas vezes faço estalar meu chicote diante da porta da casa! Quantas vezes subi a escada; chegava à porta do quarto e não podia entrar… Como posso entrar na casa? Nada sei; é este o meu tormento incessante, o sofrimento cruel que por vezes me faz desesperar da existência de Deus. Dizem que ele é poderoso, e não pode abrir os meus olhos! Ele é bom, e não pode acalmar minha dor!… Enfim, sem dúvida mereci este suplício, que não me deixa nenhum repouso. Oh! procurar sempre e sempre procurar em vão… Se o amor não fosse uma palavra vã, parece que eu já teria atraído esse ser que amo e sem o qual não posso viver…

“Não sabeis o que foi feito dela? – Não; vejo que nada sabeis! ninguém pode dar notícias suas; creio que ficaria mais calmo se pudesse vê-la e com ela falar! Há pouco tempo eu era mais resignado, porque ainda a esperava; mas hoje minha paciência esgotou-se!…

“Sofro, meu Deus! Por quê? Nada… nada de consolação, nada de resposta, nada de luz… Em toda parte, ao meu redor, um silêncio lúgubre uma escuridão glacial… Quanto não devem sofrer os que semearam sua vida de crimes!… O remorso deve consumi-los, já que eu, que nada fiz, sou incapaz de descrever as minhas angústias… e, depois, esqueci tudo, salvo que não posso voltar; esqueci até a rua onde morávamos e, contudo, ali vou sem me dar conta… Subo a escada… chamo e ninguém me responde; entretanto, alguma coisa me diz que ele me ouve.

“Oh! se pelo menos eu tivesse paciência! Sois bons, bem o sinto; se acreditardes que a prece me faça alguma bem; orai por mim, orai por um cego infeliz.”


Mouraille.


II. – A este Espírito sucedeu o de Brunat, protetor do grupo; dirigindo-se ao infeliz Mouraille, disse-lhe:

“Caro Espírito, se me sirvo do órgão de um encarnado para te falar, é que sob a opressão dos laços carnais que ainda te dominam, poderás falar melhor assim, ouvir minhas palavras e compreender o seu significado.

“Ouvimos teus lamentos e tua dor nos tocou; compadecemo-nos vivamente e desejamos de toda a nossa alma concorrer para o teu esclarecimento. Mas, para isto, devemos dar-te a conhecer donde vem essa nuvem espessa que obscurece tua vista!

“Queixas-te com razão, porque sofres realmente e muito!… mas, se acreditas na existência de Deus, não deves ignorar que lhe deves tudo. As alegrias de tua existência e esta própria existência, foi ele que tas deu!… Que fizeste pelos infelizes da Terra, que deixaste? Vieste em seu auxílio? estiveste na mansarda do doente e do pobre envergonhado? alguma vez consolaste os aflitos? enfim, pautaste a tua vida segundo a tua consciência, essa voz divina que fala a cada um a linguagem da caridade, da fraternidade e da justiça? Ai! que podes responder-me?…

“Como vês, a tua foi a vida de um egoísta: se não cometeste crimes como o entendes, como muitos outros viveste para a satisfação de tuas paixões. Tu te agarraste à matéria; do teu ventre fizeste um deus… e, de repente, num festim, em meio a um banquete, a morte veio ferir-te. Em alguns segundos passaste dos prazeres tempestuosos de uma existência egoísta à obscuridade profunda em que hoje erras. Esse isolamento e essas trevas, não os mereceste? por que verias agora, tu que deixaste na noite da ignorância os que terias podido esclarecer? por que serias requestado e acolhido, desde que não podes oferecer aos teus amigos da Terra os prazeres que vos reuniam, e já que não acolheste nem requestaste aqueles a quem poderias ter dado um pouco de esperança e de resignação, essas riquezas do coração que os mais pobres podem possuir em abundância? Por que és tão infeliz? Ah! nós o vemos, nós, a quem nada é escondido; o de que lamentas são os prazeres que não podes mais desfrutar, a companhia que partilhava tua vida folgazona, a quem a orgia fazia que esquecesses o sofredor e o infeliz.

“De todos esses prazeres, dos quais havias feito o objetivo único de tua vida, que te resta, agora que teu corpo voltou à terra? Crê-nos, resigna-te a um infortúnio que não deves senão a ti mesmo. Consagra a meditar sobre a inutilidade de tua vida passada o tempo que empregas a gemer; e se quiseres obter a luz que desejas tão ardentemente, desliga-te inteiramente desses laços materiais que ainda te mantêm acorrentado.

“Até lá, a mulher que procuras permanecerá invisível para ti. Ela mesma está tão afetada por essa obscuridade terrível que não a pode dissipar senão quando reconhecer seus erros e tomar boas resoluções para suportas as provas diante das quais faliu.

“Tu me ouves, tu, me compreendes. Pobre Espírito: Escuta a minha voz; é um amigo que te fala; é um irmão que conheceu a fraqueza e que se serve de sua experiência para esclarecer-te. Reflete bem as minhas palavras, aproveita-as, e quando voltares a esta assembleia simpática, esperamos que então lamentarás a vida dissipada tão levianamente, e que te prepararás um futuro mais digno, através de firmes resoluções. Não percas um tempo precioso para procurar tua mulher; ainda não poderias encontrá-la, porque faz parte de tua provação ignorar se ela vive ou se está no mundo dos Espíritos.

“Adeus, irmão infeliz. Tens a nossa simpatia e o nosso sincero interesse pela tua sorte.”


Brunat.


III. – Após alguns instantes, um Espírito ainda mais infeliz que o primeiro apoderou-se do médium e o pôs em estado de agitação extrema. Enfim, pouca a pouco, volta a calma e o Espírito pode comunicar se e falar.

“Eu o quero, eu o quero!… matei-me para o rever!… Por que não está aí? Que devo fazer? Devo enforcar-me mais uma vez?… – Mouraille! Mouraille! onde estás? Sei que morri… enforquei-me!… não podia mais suportar a vida! – e, contudo, ainda estou separada de ti… Se não sentisse que vivo, diria que a morte aniquila tudo! Mas vivo, meu Deus, uma vida terrível!… e então… então tu deves viver também!… e estás perdido para mim como no primeiro dia de tua morte! – Ah! como sofro…

“Oh! quantas vezes, quando eu era ainda viva, ouvi o estalo do chicote diante da porta! Ouvia os teus passos na escada… sentia bem que eras tu; mas não te podia ver… Não ouvi uma vez, mas cem vezes, e sempre à mesma hora!

“Meu Deus, deixei este mundo por uma morte horrível; abandonei tudo; por quê? Para nada ver… para não ter apoio nem consolo… Muitas vezes ainda vou ao meu quarto e, quando estou lá, ouço sempre o estalo do chicote e te escuto andar, mas nada vejo…

“Oh! como esta noite me assusta, como este silêncio me acabrunha… É esta a consolação que dá a morte?… Se é verdade que existe um Deus supremo, por que nos faz nascer? por que nos faz viver? por que nos faz sofrer?… e, depois de morto, é preciso sofrer mais ainda… Mas, por que falo? ninguém me ouve, ninguém me compreende. Chamo, e nem mesmo o eco me responde. Nada… nada além de um silêncio terrível que me agita e me faz sofrer… Oh! se ainda há seres que me possam ouvir, que me possam escutar, vinde em meu auxílio, eu vo-lo suplico!

“Onde estou?… Vou ao cemitério; encontro o corpo daquele que me chamou para a eternidade… Mas, nada de consolação… Volto à minha casa… ainda nada! E, contudo, falo, pelo que pude compreender, por uma voz desconhecida, que me é simpática… Mas, a quem falo? e por que exprimir minhas queixas e dar palavras a meus lamentos, desde que ninguém me ouve nem pode compreender-me?

“Oh! meu Deus! como esta noite é horrível!… Quantos tormentos! é o inferno; oh! certamente é o inferno!… Acreditava que se queimava no inferno… Mas queimar não deve ser nada em comparação com o que sofro… Estou sentada num local isolado e obscuro… Sinto um frio glacial e daqui faço duas corridas: vou ao cemitério, e do cemitério à minha casa, e volto sempre esmagada de fadiga, a morte na alma!… Nada de sono para entorpecer minhas pálpebras! nada de trégua, nem de repouso… nada de calma para minha alma agitada!

“O vazio me envolve!… Vou recomeçar minha corrida rude e penosa… Talvez o veja; mas, se não o vir, ao menos irei escutar os estalos de seu chicote e seus passos barulhentos!…”


IV. – Depois de uma pausa de alguns instantes, os traços do médium tomam uma expressão doce e calma; o Espírito Brunat retorna e, com voz simpática, dirige-se a esse pobre Espírito e lhe fala assim:

“Escuta-me, pobre alma sofredora: Acreditas estar só e abandonada; escutas uma voz amiga, conquanto invisível para ti. Dizias há pouco que nem mesmo o eco respondia aos teus lamentos; mas, lembra-te de que destruíste tua vida, voluntariamente, violentamente, vida esta que não te pertencia, que devias dedicar aos teus irmãos infelizes. Sabias que agias mal! Deixa de procuras inúteis! Estais separados por um abismo de trevas. Ora; substitui teus vãos lamentos por um pesar ardente e sincero e por boas resoluções, únicos que podem levar-te um raio de luz.

“Coragem!… Implora o Deus de bondade e de misericórdia, e ele te ajudará a sair um dia desta horrível situação. “Lembra-te bem, em tuas mais dolorosas crises, de que tens em mim um amigo e um irmão.”

Brunat.


Observação do presidente do grupo: “Nem o médium, nem nenhuma das pessoas presentes conheciam esses dois Espíritos sofredores.”

“Tendo tido ocasião de falar do caso, foi-nos dito que, com efeito, o marido morreu em meio a um banquete há alguns meses, e que sua mulher enforcara-se poucos dias atrás.

“A pessoa que deu estas informações acrescentou, a propósito da mulher, que o seu suicídio não surpreendeu a ninguém no quarteirão, e que a Sra. Mouraille, depois da morte do marido, muitas vezes dizia que o ouvia dar chicotadas no ar (ele era negociante de gado), andar na escada, e que desejava ardentemente morrer para ir ao encontro dele o mais depressa.”


[A. DESLIENS.]


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