O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Viagem Espírita em 1862 e outras viagens de Allan Kardec.

(Idioma francês)

DISCURSOS

Pronunciados nas

REUNIÕES GERAIS DOS ESPÍRITAS DE LYON E BORDEAUX.


I.

Senhores e caros irmãos espíritas,

Não sois mais principiantes em Espiritismo. Assim, hoje deixarei de lado os detalhes práticos sobre os quais, devo reconhecer, estais suficientemente esclarecidos, para considerar a questão sob um aspecto mais largo, sobretudo em suas consequências. Este lado da questão é grave, o mais grave incontestavelmente, pois que mostra o objeto para onde se inclina a Doutrina e os meios para atingi-lo. Serei um pouco longo, talvez, pois o assunto é muito vasto e, contudo, restaria ainda muito a dizer para o completar. Assim, reclamarei vossa indulgência considerando que, não podendo ficar convosco senão por algum tempo, sou forçado a dizer de uma só vez o que, em outras circunstâncias, eu teria dividido em várias partes.

Antes de abordar o ângulo principal do assunto, creio dever examiná-lo de um ponto de vista que, de certo modo, me é pessoal. Todavia, se não se tratasse senão de uma questão individual, seguramente com ela eu não me ocuparia; porém, ela se liga a várias questões gerais, podendo resultar instruções para todo mundo. Foi esse o motivo que me levou a aproveitar esta ocasião para explicar a causa de certos antagonismos que muita gente se admira de encontrar em meu caminho.

No estado atual das coisas aqui na Terra, qual é o homem que não tem inimigos? Para não os ter, fora preciso não estar na Terra, por ser esta a consequência da inferioridade relativa do nosso globo e de sua destinação como mundo de expiação. Para isto, bastaria fazer o bem? Oh! não; o Cristo não está aí para o provar? Se, pois, o Cristo, a bondade por excelência, foi alvo de tudo quanto a maldade pôde imaginar, por que nos admirarmos de que assim suceda com aqueles que valem cem vezes menos?

O homem que pratica o bem — isto dito em tese geral — deve, pois, esperar contar com a ingratidão, ter contra ele aqueles que, não o praticando, são ciumentos da estima concedida aos que o praticam. Os primeiros, não se sentindo fortalecidos para se elevarem, procuram rebaixar os outros ao seu nível, pondo em xeque, pela maledicência ou pela calúnia, aqueles que os ofuscam.

Ouve-se constantemente dizer que a ingratidão com que somos pagos endurece o coração e nos torna egoístas; falar assim é provar que se tem o coração fácil de ser endurecido, porquanto esse temor não poderia deter o homem verdadeiramente bom. O reconhecimento já é uma remuneração do bem que se faz; praticá-lo tendo em vista esta remuneração, é fazê-lo por interesse. E, depois, quem sabe se aquele a quem se faz um favor, e do qual nada se espera, não será levado a melhores sentimentos por um reto proceder? É talvez um meio de levá-lo a refletir, de abrandar sua alma, de salvá-lo! Esta esperança é uma nobre ambição; se nos decepcionamos, não teremos realizado o que nos cabia realizar.

Entretanto, não se deve crer que um beneficio que permanece estéril na Terra seja sempre improdutivo; muitas vezes é um grão semeado que só germina na vida futura do beneficiado. Várias vezes já observamos Espíritos, ingratos como homens, serem tocados, como Espíritos, pelo bem que lhes haviam feito, e essa lembrança, despertando neles bons pensamentos, facilita-lhes o caminho do bem e do arrependimento, contribuindo para abreviar-lhes os sofrimentos. Só o Espiritismo poderia revelar este resultado da beneficência; só a ele estava dado, pelas comunicações de além-túmulo, mostrar o lado caridoso desta máxima: Um benefício jamais é perdido, em lugar do sentido egoísta que lhe atribuem. Mas, voltemos ao que nos concerne.

Pondo de lado qualquer questão pessoal, tenho adversários naturais nos inimigos do Espiritismo. Não penseis que me lastime: longe disto! Quanto maior é a animosidade deles, tanto mais ela comprova a importância que a Doutrina assume aos seus olhos; se fosse uma coisa sem consequência, uma dessas utopias que já nascem inviáveis, não lhe prestariam atenção, nem a mim. Não vedes escritos muito mais hostis que os meus quanto aos preconceitos, e nos quais as expressões não são mais moderadas do que a ousadia dos pensamentos, sem que, no entanto, digam uma única palavra? Dar-se-ia o mesmo com as doutrinas que procuro difundir, se permanecessem restritas às folhas de um livro. Mas, o que pode parecer mais surpreendente, é que eu tenha adversários, mesmo entre os adeptos do Espiritismo. Ora, é aqui que uma explicação se faz necessária.

Entre os que adotam as ideias espíritas, há, como sabeis, três categorias bem distintas:

1º) — Os que creem pura e simplesmente nos fenômenos das manifestações, mas que não lhes deduzem nenhuma consequência moral;

2º) — Os que veem o lado moral, mas o aplicam aos outros e não a si próprios;

3º) — Os que aceitam para si mesmos todas as consequências da Doutrina, e que praticam ou se esforçam por praticar a sua moral.

Estes, vós bem o sabeis, são os verdadeiros espíritas, os espíritas cristãos. Esta distinção é importante, porque explica bem as anomalias aparentes. Sem isso seria difícil compreender-se a conduta de certas pessoas. Ora, o que reza esta moral? Amai-vos uns aos outros; perdoai aos vossos inimigos; retribuí o mal com o bem; não tenhais ódio, nem rancor, nem animosidade, nem inveja, nem ciúme; sede severos para convosco mesmos e indulgentes para com os outros. Tais devem ser os sentimentos de um verdadeiro espírita, daquele que vê o fundo e não a forma, que põe o Espírito acima da matéria; este pode ter inimigos, mas não é inimigo de ninguém, pois não deseja o mal a ninguém e, com mais forte razão, não procura fazer o mal a quem quer que seja.

Como vedes, senhores, este é um princípio geral, do qual todo mundo pode tirar proveito. Se, pois, tenho inimigos, não podem ser contados entre os espíritas desta categoria, porque, admitindo-se que tivessem legítimos motivos de queixa contra mim, o que me esforço por evitar, isto não seria motivo para me odiarem, considerando-se que não fiz mal a ninguém. O Espiritismo tem por divisa: Fora da caridade não há salvação, o que significa dizer: Fora da caridade não há verdadeiros espíritas. Concito-vos a inscrever, doravante, esta dupla máxima em vossa bandeira, porque ela resume ao mesmo tempo a finalidade do Espiritismo e o dever que ele impõe.

Estando, pois, admitido que não se pode ser bom espírita com sentimentos de rancor no coração, eu me orgulho de contar apenas com amigos entre estes últimos, pois que, se eu tiver defeitos, eles saberão desculpá-los. Veremos, em seguida, a que imensas e férteis consequências conduz este princípio.

Vejamos, pois, as causas que podem excitar certas animosidades.

Desde que surgiram as primeiras manifestações dos Espíritos, muitas pessoas aí viram um meio de especulação, uma nova mina a explorar. Se essa ideia tivesse seguido seu curso, teríeis visto médiuns pululando por toda parte, ou se apresentando como tais, dando consulta a tanto por sessão; os jornais estariam cobertos por seus anúncios e reclames; os médiuns se teriam transformado em ledores de sorte e o Espiritismo seria incluído na mesma linha da adivinhação, da cartomancia, da necromancia, etc. Nesse conflito, como poderia o público discernir a verdade da mentira? Reabilitar o Espiritismo não seria coisa fácil. Era preciso impedir que ele tomasse esse atalho funesto, cortando pela raiz um mal que o teria retardado de mais de um século. Foi o que me esforcei por fazer, demonstrando, desde o princípio, o lado grave e sublime desta nova ciência; fazendo-a sair do caminho puramente experimental para fazê-la entrar no da filosofia e da moral; mostrando, finalmente, que seria profanação explorar a alma dos mortos, quando cercamos seus despojos de respeito. Desse modo, assinalando os inevitáveis abusos que resultariam de semelhante estado de coisas, contribuí, e disso me ufano, para desacreditar a exploração do Espiritismo, levando o público a considerá-lo como coisa séria e santa.

Creio ter prestado algum serviço à causa; mas, não tivesse feito senão isso, e já me daria por satisfeito. Graças a Deus meus esforços foram coroados de sucesso, não apenas na França, mas no estrangeiro; e posso dizer que os médiuns profissionais são hoje raras exceções na Europa. Por toda parte onde minhas obras penetraram e servem de guia, o Espiritismo é considerado sob o seu verdadeiro ponto de vista, isto é, sob o ponto de vista exclusivamente moral; por toda parte os médiuns, devotados e desinteressados, compreendem a santidade de sua missão, são cercados da consideração que lhes é devida, seja qual for a sua posição social; e essa consideração cresce em razão mesma da posição realçada pelo desinteresse.

Não pretendo absolutamente dizer que entre os médiuns interessados não existam muitos que sejam honestos e dignos de estima. Mas a experiência tem provado, a mim e a tantos outros, que o interesse é um poderoso estimulante para a fraude, porque se quer ganhar dinheiro; e se os Espíritos não ajudam, o que acontece muitas vezes, já que não estão por conta de nossos caprichos, a astúcia, fecunda em expedientes, encontra facilmente meios de supri-los. Para um que agir lealmente, haverá cem que abusaria e prejudicaria o Espiritismo em sua reputação. Por isso, os nossos adversários não perderam a ocasião para explorar, em proveito de suas críticas, as fraudes que puderam testemunhar, concluindo que tudo devia ser falso, e que era de todo conveniente que se opusessem a esse novo gênero de charlatanismo. Em vão objeta-se que a santa doutrina não é responsável por tais abusos. Conheceis o provérbio: “Quando se quer matar o cão alheio, diz-se que está raivoso.”

Que resposta mais peremptória poder-se-á dar à acusação de charlatanismo do que dizer: “Quem vos pediu para vir? Quanto pagastes para entrar?”Aquele que paga quer ser servido; exige uma compensação por seu dinheiro; se não lhe dão o que espera, tem o direito de reclamar. Ora, para evitar isto, querem servi-lo a qualquer preço. Eis o abuso; mas esse abuso, em vez de ser exceção, ameaça tornar-se uma regra, sendo preciso detê-lo. Agora que a opinião se formou a respeito, só os inexperientes correm perigo.

Àqueles, pois, que se queixarem de ter sido enganados, ou de não terem obtido as respostas que desejavam, pode-se dizer: Se tivésseis estudado o Espiritismo, teríeis sabido em que condições ele pode ser observado com proveito; quais são os legítimos motivos de confiança e de desconfiança, o que se pode dele esperar, e não teríeis pedido o que ele não pode dar; não teríeis ido consultar um médium como a cartomante, para pedir revelações aos Espíritos, informações sobre heranças, descobertas de tesouros e cem outras coisas semelhantes que não são da alçada do Espiritismo. Se fostes induzido em erro, não deveis inculpar senão a vós mesmos.

É bem evidente que não se pode considerar como exploração a contribuição que se paga a uma sociedade para prover às despesas da reunião. Diz a mais vulgar equidade que não se pode impor esse gasto a pessoas de parcos recursos ou que não dispõem de tempo suficiente para comparecerem às reuniões. A especulação consiste em se fazer uma indústria da coisa, em convocar o primeiro que chegar, curioso ou indiferente, para arrancar seu dinheiro. Uma sociedade que assim agisse, seria tão repreensível, ou mais repreensível ainda que o indivíduo, e já não mereceria confiança.

E justo e não constitui exploração ou especulação que uma sociedade acuda a todas as suas despesas, não as deixando sobre os ombros de um só; outra, porém seria a situação, se o primeiro que chegasse pudesse comprar o direito de entrada, mediante pagamento, porque seria desnaturar o objetivo essencialmente moral e instrutivo das reuniões desse gênero, para fazer delas um espetáculo de curiosidade. Quanto aos médiuns, eles se multiplicam de tal modo, que os profissionais seriam hoje completamente supérfluos.

Tais são, senhores, as ideias que me esforcei por fazer prevalecer, e me sinto contente por ter triunfado mais facilmente do que esperava. Mas, compreendei, aqueles de quem frustrei as esperanças não são meus amigos. Eis, pois, uma categoria que não me pode ver com bons olhos, o que, aliás, pouco me inquieta. Se alguma vez a exploração do Espiritismo tentasse introduzir-se em nossa cidade, eu vos convidaria a renegar essa nova indústria, a fim de não serdes solidários com ela e para que as censuras que possam provocar não venham a cair sobre a doutrina pura.

Ao lado da especulação material, há a que se poderia chamar especulação moral, isto é, a satisfação do orgulho, do amor-próprio; é o caso daqueles que, mesmo sem interesse pecuniário, julgavam fazer do Espiritismo um pedestal honorífico para se porem em evidência. Não os favoreci, e meus escritos, assim como meus conselhos, se contrapuseram a mais de uma premeditação, mostrando que as qualidades do verdadeiro espírita são a abnegação e a humildade, segundo esta máxima do Cristo: “Quem se exalta será humilhado.” Esta segunda categoria também não me aprecia e bem poderia ser chamada a das ambições frustradas e dos amores-próprios melindrados.

Em seguida vêm as pessoas que não me perdoam por ter sido bem-sucedido, para as quais o sucesso de minhas obras é uma causa de desgosto, que perdem o sono quando assistem aos testemunhos de simpatia que me são dispensados. É a camarilha dos invejosos, pouco ou nada indulgente, reforçada por criaturas que, por temperamento, não podem ver um homem erguer um pouco a cabeça sem tentarem abaixá-la.

Uma camarilha das mais irascíveis, acreditai, encontra-se entre os médiuns, não entre os médiuns interesseiros, mas entre os desinteressados, materialmente falando; quero falar dos médiuns obsidiados, ou melhor, fascinados. Algumas observações a respeito não deixam de ter sua utilidade.

Por orgulho, estão de tal modo persuadidos de que tudo quanto obtêm é sublime, e não pode vir senão de Espíritos Superiores, que se irritam à mínima observação crítica, a ponto de se indisporem com seus amigos quando estes têm a inabilidade de não admirar os seus absurdos. Nisto reside a prova da má influência que os domina, pois, supondo-se que, por falta de julgamento ou de instrução, eles não enxergassem claramente, não seria motivo para embirrar contra os que não lhes comungam a opinião; mas isto não convém aos Espíritos obsessores que, para melhor manter o médium sob sua dependência, inspiram-lhe o afastamento, mesmo a aversão por quem quer que lhes possa abrir os olhos.

Há, ainda, aqueles cuja susceptibilidade é levada ao excesso; que se melindram com as mínimas coisas, mesmo com o lugar que lhes é destinado nas reuniões, se não os põem em evidência, com a ordem estabelecida para a leitura de suas comunicações, ou quando se proíbe a leitura daquelas cujo objeto não parece oportuno numa assembleia; dos que não são solicitados com muito empenho a dar o seu concurso; outros se contrariam porque a ordem dos trabalhos não é invertida, de modo a contemplar as suas conveniências; outros gostariam de ser tidos como médiuns titulares de um grupo ou de uma sociedade, quer chova ou faça bom tempo, e que seus Espíritos dirigentes fossem tomados por árbitros absolutos de todas as questões, etc. Estes motivos são tão pueris e mesquinhos que nenhum deles ousa confessá-los; mas nem por isso deixam de ser a fonte de uma surda animosidade que, mais cedo ou mais tarde se trai, ou pelas malquerenças, ou pelo afastamento. Não tendo boas razões para dar, há os que não têm escrúpulos de alegar pretextos imaginários. Como não estou disposto a me dobrar diante de todas essas pretensões, é um erro — que digo? é um crime imperdoável aos olhos de certas pessoas que, naturalmente me deram as costas, erro maior ainda porque não lhes dei importância. Imperdoável! Concebeis esta palavra nos lábios de pessoas que se dizem espíritas? Tal palavra deveria ser riscada do vocabulário do Espiritismo.

Esse desgosto, a maior parte dos chefes de grupos ou de sociedades, como eu, tem experimentado, e os concito a fazer como eu, isto é, a dispensarem os médiuns que antes constituem um entrave que um recurso. Com eles estamos sempre pouco à vontade, temerosos de feri-los com as mais insignificantes ações.

Antigamente esse inconveniente era mais frequente do que agora. Quando os médiuns eram mais raros, devíamos contentar-nos com os que existiam; mas hoje, que eles se multiplicam a olhos vistos, o inconveniente diminui em razão da própria escolha e à medida que eles se compenetram melhor dos verdadeiros princípios da Doutrina.

Pondo de lado o grau da faculdade, as qualidades essenciais de um bom médium são a modéstia, a simpatia e o devotamento. Deve oferecer seu concurso tendo em vista tornar-se útil, e não para satisfazer à sua vaidade; jamais deve tomar partido das comunicações que recebe, pois, de outra forma, poderia fazer crer que nelas põe algo de si, e que tem interesse em defendê-las; deve aceitar a crítica, mesmo solicitá-la, e submetê-la ao parecer da maioria, sem ideias premeditadas; se o que escreve é falso, é mau, detestável, devem dizê-lo sem temor de o magoar, porque ele não é responsável por nada. Eis os médiuns realmente úteis numa reunião e com os quais jamais teremos contrariedade, porque compreendem a Doutrina; os outros não a compreendem ou não a querem compreender. São estes que recebem as melhores comunicações, porque não se deixam dominar por Espíritos orgulhosos; os Espíritos mentirosos os temem, pois se reconhecem impotentes para deles abusar.

Em seguida vem a categoria das pessoas que jamais estão contentes. Algumas acham que ando depressa demais, outras com excessiva lentidão; é, de fato, como na fábula do Moleiro, seu filho e o asno . Os primeiros me reprovam por haver formulado princípios prematuros, de me impor como chefe de escola filosófica. Mas, pondo de lado qualquer ideia espírita, não tenho o direito de criar, como tantos outros, uma filosofia a meu modo, ainda que absurda? Se os meus princípios são falsos, por que não colocam outros em seu lugar e não os fazem prevalecer? Ao que parece, em geral eles não são considerados tão despropositados, já que encontram numerosos aderentes; mas não seria exatamente isto que excita o mau humor de certa gente? Se esses princípios não encontrassem partidários, fossem ridículos em alto grau, não se falaria mais deles.

Os segundos, os que pretendem que não ando com bastante rapidez, esses gostariam de me empurrar — creio que com boa intenção, pois é sempre melhor acreditar no bem do que no mal — num caminho que não quero me arriscar. Sem, pois, me deixar influenciar pelas ideias de uns e de outros, prossigo meu caminho; tenho um objetivo, vejo-o, sei quando e como o atingirei, e não me inquieto com os clamores dos que passam.

Como vedes, senhores, não faltam pedras em meu caminho; passo por elas, mesmo sobre as maiores. Se se conhecesse a verdadeira causa de certas antipatias e de certos afastamentos, muitas surpresas se apresentariam. Deve-se ainda mencionar as pessoas que se puseram, em relação a mim, em posições falsas, ridículas ou comprometedoras, e que procuram justificar-se, sub-repticiamente, por meio de pequenas calúnias; os que esperavam seduzir-me pela bajulação, crendo poder levar-me a servir aos seus desígnios e que reconheceram a inutilidade de suas manobras para atrair minha atenção. Enfim, os que não me perdoam por lhes ter adivinhado os propósitos, e que são como a serpente sobre a qual se pisa. Se toda essa gente quisesse se colocar, ao menos por um instante, em uma posição extraterrena e ver as coisas um pouco mais do alto, compreenderia o quanto é pueril o que a preocupa e não se admiraria da pouca importância que a tudo isso dão os verdadeiros espíritas. É que o Espiritismo abre horizontes tão vastos, que a vida corporal, tão curta e tão efêmera, se apaga com todas as suas vaidades e suas pequenas intrigas, ante o infinito da vida espiritual.

Não devo, entretanto, omitir uma censura que me foi dirigida: a de nada fazer para trazer novamente a mim as pessoas que se afastam. Isto é verdadeiro, e se é uma censura fundada, eu a mereço, porque jamais dei um passo nesse sentido; eis os motivos de minha indiferença:

Os que vêm a mim, fazem-no porque isto lhes convém; é menos por minha pessoa do que pela simpatia aos princípios que professo. Os que se afastam, fazem-no porque não lhes convenho ou porque não concordam com a nossa maneira de ver as coisas. Por que, então, eu iria contrariá-los, impondo-me a eles? Parece-me mais conveniente deixá-los em paz. Aliás, eu não teria mesmo tempo para isto, pois, como é sabido, minhas ocupações não me deixam um instante de repouso, e por um que parte, há mil que chegam; dedico-me, antes de tudo, a estes últimos, e é isso que faço. Orgulho? desprezo por outrem? Oh! seguramente não, não desprezo ninguém; lamento os que agem mal e peço a Deus e aos bons Espíritos que façam renascer neles melhores sentimentos; eis tudo. Se voltam, são sempre bem-vindos, mas, correr atrás deles, jamais o faço, em razão do tempo que reclamam as pessoas de boa vontade; e, depois, porque não concedo a certas pessoas a importância que elas se atribuem. Para mim, um homem é um homem e nada mais; meço seu valor por seus atos, por seus sentimentos, e não pela posição que ocupa. Ainda que esteja altamente colocado, se agir mal, se for egoísta e presunçoso de sua dignidade, é a meus olhos inferior a um simples operário que age bem, e eu aperto mais cordialmente a mão de um pequeno que deixa falar o coração, do que a de um grande, cujo coração nada diz; a primeira me aquece, a segunda me enregela.

Personagens da mais alta condição social me honram com sua visita, sem que, por causa delas, jamais um proletário tenha ficado na antecâmara. Muitas vezes, em meu salão, o príncipe fica lado a lado com o artesão; se se sentir humilhado, dir-lhe-ei que não é digno de ser espírita. Mas, sinto-me feliz em dizer, muitas vezes os tenho visto apertarem-se as mãos fraternalmente, e digo de mim para mim: “Espiritismo, eis um dos teus milagres; é o prelúdio de muitos outros prodígios!”

Não dependeria senão de mim abrir as portas da alta sociedade; contudo, jamais fui nelas bater. Isto me tomaria um tempo que creio poder empregar mais utilmente. Coloco em primeira linha consolar os que sofrem, levantar a coragem dos abatidos, arrancar um homem de suas paixões, do desespero, do suicídio, detê-lo talvez no abismo do crime. Isto não vale mais do que os lambris dourados? Tenho milhares de cartas que para mim são mais valiosas do que todas as honras da Terra, e que encaro como verdadeiros títulos de nobreza. Assim, não vos admireis se deixo partir aqueles que não me procuram.

Tenho adversários, bem o sei! Mas o seu número não é tão grande quanto se poderia crer pelos cálculos que fiz; eles se encontram nas categorias que citei, mas são apenas indivíduos isolados, e seu número é pouca coisa em comparação com os que desejam testemunhar-me sua simpatia. Aliás, jamais foram bem-sucedidos em perturbar meu repouso; jamais suas maquinações e suas diatribes me abalaram; e devo acrescentar que esta profunda indiferença de minha parte, o silêncio que oponho aos seus ataques, é o que mais os exaspera. Por mais que façam, nunca conseguirão fazer-me sair da moderação, que é a regra de minha conduta; jamais poderão dizer que respondi injúria com injúria. As pessoas que me veem na intimidade sabem que jamais me ocupei delas, que nem uma única palavra foi dita na Sociedade, nem se fez alusão relativamente a qualquer uma delas. Nunca respondi na Revista às suas agressões, quando dirigidas à minha pessoa, e Deus sabe que não têm faltado ocasiões!

Aliás, que pode o seu malquerer? Nada, nem contra a Doutrina, nem contra mim. Por sua marcha progressiva, a Doutrina prova que nada teme. Quanto a mim, não ocupando nenhuma posição, nada me pode ser tirado; como nada peço e não solicito coisa alguma, não me podem recusar nada; não devo nada a ninguém; por isso nada podem reclamar de mim; não falo mal de ninguém, nem mesmo dos que falam mal de mim. Em que poderiam, então, prejudicar-me? É verdade que podem atribuir a mim palavras que eu não disse, e é o que já fizeram mais de uma vez. Mas os que me conhecem sabem do que sou capaz de dizer e de não dizer e eu agradeço aos que, em semelhantes casos, souberam responder por mim. O que digo, estou sempre pronto a repetir, na presença de quem quer que seja, e quando afirmo não ter dito ou feito uma coisa, julgo-me no direito de ser acreditado.

Além disso, o que representam todas estas coisas, tendo em vista o objetivo a que todos nós, espíritas sinceros e dedicados, perseguimos? esse imenso futuro que se desdobra aos nossos olhos? Acreditai-me, senhores, fora preciso encarar como um roubo perpetrado contra a grande obra os instantes que perdêssemos preocupados com essas misérias. De minha parte agradeço a Deus por me ter concedido, já aqui na Terra, ao preço de algumas tribulações passageiras, tantas compensações morais e a alegria de assistir ao triunfo da Doutrina.

Peço-vos perdão, senhores, por vos haver entretido, por tanto tempo, com a minha pessoa, pois julguei que era útil estabelecer claramente esta posição, a fim de que soubésseis a quem vos ater, conforme as circunstâncias, e para que possais estar convencidos de que minha linha de conduta está traçada e que nada me fará desviar dela. Aliás, creio que destas observações — abstração feita de minha pessoa — poderão resultar alguns ensinamentos úteis.

Passemos, agora, a um outro ponto e vejamos em que situação se encontra o Espiritismo.


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