O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Ação e reação — André Luiz


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Resgate interrompido

(Sumário)

1. Acompanhando o Assistente, passamos a cooperar na rearmonização de pequena família domiciliada em subúrbio de populosa capital.

2 Ildeu, o chefe da casa, homem que mal atingira a madureza física, pouco além dos trinta e cinco de idade, encontrara em Marcela a esposa abnegada e mãe de seus três filhinhos, Roberto, Sônia e Márcia; entretanto, seduzido pelos encantos da jovem Mara, moça leviana e inconsequente, tudo fazia para que a esposa o abandonasse.

3 Marcela, porém, educada na escola do Dever, recolhia-se no lar e tudo fazia para não deixar perceber a própria dor.

4 Pelos gestos rudes e pela deplorável conduta em casa, não desconhecia a modificação do pai de seus filhos, e, recebendo cartas insultuosas da rival que lhe disputava o companheiro, sabia chorar em silêncio, confiando-as ao fogo para que não caíssem sob o olhar do esposo.

5 Doía-nos, cada noite, vê-la em prece, ao lado das criancinhas.

Roberto, o primogênito, com nove anos de idade, acariciava-lhe a cabeça, adivinhando-lhe os soluços imobilizados na garganta, e as duas pequeninas, na inconsciência infantil, repetiam maquinalmente as orações ditadas pela nobre senhora, oferecendo-as a Jesus, em favor do “papai”.

6 Em atormentada vigília até noite alta, agoniava-se-lhe o espírito, observando Ildeu, estróina, alcançando o lar, tresandando a licores alcoólicos e exibindo os sinais de aventuras inconfessáveis.

7 Se erguia a voz, lembrando alguma necessidade dos meninos, retorquia ele, irritado:

— Vida infame! Sempre você a recriminar-me, a aborrecer-me, a perseguir-me com censuras e petitórios!… Se quiser dinheiro, trabalhe. Se eu soubesse que o casamento seria isso, teria preferido estourar os miolos a assinar um contrato que me escraviza a existência inteira!…

8 E gritando, intemperante, mostrava-nos a tela das suas recordações, em que Mara, a jovem sedutora, lhe surgia à mente, como sendo a mulher ideal. Cotejava-a com a esmaecida figura da esposa que as dificuldades acabrunhavam e, governado pela imagem da outra, entregava-se a chocantes excitações, ansiando fugir do lar.

9 Marcela, em pranto, suplicava-lhe tolerância e serenidade, acentuando que não desdenhava o serviço.

Despendia o tempo de que dispunha na cooperação mal remunerada, em favor de lavanderia modesta, contudo, os afazeres domésticos não lhe permitiam fazer mais.

10 — Hipócrita! — Berrava o marido que a cólera transtornava, — e eu? Que pretende você de mim? Posso, acaso, fazer mais? Sou um homem dependurado em lojas e armazéns… Devo a todos!… Por sua causa, simplesmente em razão do seu desperdício… Não sei até quando poderei aturá-la. Não será mais aconselhável regresse você à terra que teve a infelicidade de vê-la nascer? Seus pais estão vivos…

11 A pobre criatura emudecia em lágrimas, no entanto, porque a voz dele fosse estentórica, quase sempre o pequeno Roberto acordava e acorria em socorro da mãezinha, enlaçando-a, estremunhado.

12 Ildeu avançava sobre o miúdo interventor a sopapos, clamando com insofreável revolta:

— Saia daqui! Saia daqui!…

13 E qual se o petiz lhe não fora filho mas adversário confesso, acrescentava, cerrando os punhos:

— Tenho gana de matá-lo!… Matá-lo!… Todas as noites, esta mesma pantomima. Bandido! Palhaço!… E o menino, agarrado ao colo materno, sofria pancadas até recolher-se, de novo, ao leito, em pranto convulsivo.

14 Entretanto, se as filhinhas choramingassem, eis que o genitor se desfazia em ternura, ainda mesmo quando plenamente embriagado, proferindo, bondoso:

— Minhas filhas!… Minhas pobres filhas!… Que será de vocês no futuro? É por vocês que ainda me encontro aqui, tolerando a cruz desta casa!…

E, não raro, ele próprio ia reacomodá-las no berço.

15 Silas e nós entrávamos em ação, a benefício de Marcela e dos filhinhos.

Do atormentado lar, ameaçado de completa destruição, demandávamos outros setores de serviço, sem que o Assistente encontrasse oportunidade de administrar-nos esclarecimentos mais amplos.

16 Todavia, quase que diariamente, à noite, ali aplicávamos alguns minutos em tarefas que nos falavam aos refolhos do coração.

Contudo, apesar de nosso esforço, o chefe da família mostrava-se, cada dia, mais indiferente e distante.

17 Enfadado e irritadiço, não concedia à esposa nem mesmo a gentileza de leve saudação. Fascinado pela outra, passara a odiá-la. Pretendia desobrigar-se do compromisso assumido e trilhar nova senda…

18 No entanto, como atender ao problema do amor às pequeninas?

— “Sinceramente, — pensava de si para consigo, — não amava a Roberto, o filho cujo olhar o acusava sem palavras, lançando-lhe em rosto o censurável procedimento, mas adorava Sônia e Márcia, com desvelada ternura… Como ausentar-se delas no desquite provável? Decerto, a companheira teria assegurados, perante a lei, os direitos de mãe…Senhora de nobre conduta, Marcela, contaria com o favor da Justiça…”

19 Refletia, refletia…

Ainda assim, não renunciava ao carinho de Mara, cuja dominação lhe empolgava o sentimento enfermiço.

Fosse onde fosse, registava-lhe a influência sutil, a desfibrar-lhe o caráter e a dobrar-lhe a cerviz de homem que, até encontrá-la, fora honrado e feliz.

20 Por vezes, tentava subtrair-se-lhe ao jugo, mas debalde.

Marcela apresentava o semblante da disciplina que lhe competia observar e da obrigação que lhe cabia cumprir, quando Mara, de olhos em fogo, lhe acenava à liberdade e ao prazer.


2. Foi assim que lhe nasceu no cérebro doentio uma ideia sinistra: assassinar a esposa, escondendo o próprio crime, para que a morte dela aos olhos do mundo passasse como sendo autêntico suicídio.

2 Para isso alteraria o roteiro doméstico.

3 Procuraria abolir o regime de incompreensão sistemática, daria tréguas à irritação que o senhoreava e fingiria ternura para ganhar confiança… E, depois de alguns dias, quando Marcela dormisse, despreocupada, desfechar-lhe-ia uma bala no coração, despistando a própria polícia.

4 Acompanhamos-lhe a evolução do tresloucado plano, porquanto é sempre fácil penetrar o domínio das formas-pensamentos, vagarosamente construídas pelas criaturas que as edificam, apaixonadas e persistentes, em torno dos próprios passos.

5 Na aparente calmaria que sustentava, Ildeu, embora sorrisse, exteriorizava ao nosso olhar o inconfessável projeto, armando mentalmente o quadro criminoso, detalhe por detalhe.

6 Para defender Marcela, porém, cuja existência era amparada pela Mansão que representávamos, o Assistente reforçou na casa o serviço de vigilância.

Dois companheiros nossos, zelosos e abnegados, alternativamente ali passaram a velar, dia e noite, de modo a entravar o pavoroso delito.

7 Achávamo-nos, certa feita, em atividade assistencial ao pé de alguns doentes, quando o irmão em serviço veio até nós, comunicando, inquieto, a precipitação dos acontecimentos.

8 De alma aturdida pela influência de homicidas desencarnados que lhe haviam percebido os pensamentos expressos, intentaria Ildeu aniquilar a companheira naquela mesma noite.

Silas não vacilou.

Demandamos, de imediato, a casa singela em que se reunia a equipe doméstica atormentada.

9 Dispondo da extensa autoridade de que se achava investido, o nosso orientador inicialmente baniu os alcoólatras e delinquentes desencarnados que ali se recolhiam, empregando o concurso de entidades amigas, em rotina de trabalho nas vizinhanças.

10 Apesar da providência, o plano infernal na cabeça de nosso pobre amigo evidenciava-se integralmente maduro.

A madrugada ia alta.

11 Com o coração precípite, relanceando o olhar medroso pelas paredes nuas do gabinete em que examinava o tambor de um revólver, n qual se nos adivinhasse a presença, o chefe da família revelava-se disposto à consumação do ato execrável.

12 Revestindo-lhe todo o cérebro, surgia a cena do assassínio, calculadamente prevista, movimentando-se em surpreendente sucessão de imagens…

13 Oh! Se as criaturas encarnadas tivessem consciência de como se lhes exteriorizam as ideias, certamente saberiam guardar-se contra o império do crime!

14 O irrefletido pai pensava demandar o aposento dos filhos, para trancá-los à chave, de maneira a evitar-lhes o testemunho, quando Silas, de improviso, avançou para o leito das meninas e, utilizando os recursos magnéticos de que dispunha, chamou a pequena Márcia, em corpo espiritual, a rápida contemplação dos pensamentos paternos.

15 A criança, em comunhão com o quadro terrível, experimentou tremendo choque e retornou, de pronto, ao veículo físico, bradando, desvairada, como quem se furtasse ao domínio de asfixiante pesadelo:

— Papai!… Paizinho! Não mate! Não mate!…

16 Ildeu, a esse tempo, já se encontrava à porta, guardando a arma na destra e tentando manobrar a fechadura com a mão livre.

Os gritos da menina ecoaram em toda a casa, provocando alarido.

17 Marcela, num átimo, pôs-se de pé, surpreendendo o marido ao pé da filha, e, junto deles, o revólver augurando maus presságios.

18 A mulher bondosa e incapaz de suspeitar das intenções dele, recolheu cautelosamente a arma e, crendo que o esposo pretendera suicidar-se, implorou em pranto:

19 — Oh! Ildeu, não te mates! Jesus é testemunha de que tenho cumprido retamente todos os meus deveres… Não quero o remorso de haver cooperado para semelhante desatino, que te lançaria entre os réprobos das leis de Deus!… Procede como quiseres, mas não te despenhes no suicídio. Se é de tua vontade, monta nova casa em que vivas com a mulher que te faça feliz… Consagrarei minha existência aos nossos filhos. Trabalharei conquistando o pão de nossa casa com o suor de meu rosto… Entretanto, suplico, não te mates!…

20 A generosa atitude daquela mulher sensibilizava-nos até as lágrimas.

O próprio Ildeu, não obstante o sentimento empedernido, sentia-se tocado de piedade, agradecendo, no íntimo, a versão que a esposa, digna e abnegada, oferecia aos acontecimentos, cuja direção não conseguira prever.

21 E, encontrando a escapatória que, de há muito, buscava, longe de ouvir os brados da consciência que o concitavam à vigilância, exclamou, à feição de vítima:

— Realmente, não posso mais… Agora, para mim, só restam dois caminhos, suicídio ou desquite…

22 Marcela, com o auxílio do Assistente, descarregou o revólver, reconduziu as crianças ao sono e deitou-se, atribulada. Nos olhos tristes, lágrimas borbulhavam na sombra, enquanto orava, súplice, na torturada quietude do seu martírio silencioso: — “Ó meu Deus, compadece-te de mim, pobre mulher desventurada!… Que fazer, sozinha na luta, com três crianças necessitadas?…”

23 Todavia, antes que a dor pungente se lhe metamorfoseasse em desânimo destruidor, Silas aplicou-lhe passes balsamizantes, situando-a na hipnose provocada, através da qual a flagelada senhora, em desdobramento, se colocou, inquieta, diante de nós.

24 Tomando-nos à conta de mensageiros do Céu, na cristalização dos hábitos em que comumente mergulham as almas encarnadas, ajoelhou-se e rogou amparo.

25 Silas, porém, soergueu-a, bondoso, e explicou:

— Marcela, somos apenas teus irmãos… Reanima-te! Não te encontras sozinha. Deus, Nosso Pai, jamais nos abandona… 26 Concede, sim, liberdade ao teu esposo, embora saibamos que o dever é uma bênção divina da qual pagaremos caro a deserção… Que Ildeu rompa os laços respeitáveis dos seus compromissos, se é que julga seja essa a única maneira de adquirir a experiência que deve conquistar… 27 Haja porém o que houver, ajuda-o com tolerância e compreensão. Não lhe queiras mal algum. Antes, roga a Jesus o abençoe e ampare, onde esteja, 28 porque o remorso e o arrependimento, a saudade e a dor para os que fogem das obrigações que o Senhor lhes confia convertem-se em fardos difíceis de carregar. Sabemos que a ele te ligaste em sagrada aliança na empresa redentora do pretérito próximo… 29 Ainda assim, se ele esmorece, à frente da luta, em pleno exercício da faculdade de escolher, não será justo lhe violentes o livre arbítrio, impondo-lhe atitudes que a ele compete cultivar. 30 Ildeu ausenta-se agora dos contratos que abraçou, a benefício de si mesmo, e interrompe o resgate das contas que lhe são próprias… Voltará, porém, mais tarde aos débitos que olvida, talvez mais onerado perante a Lei… 31 Não te lamentes, contudo, e segue adiante. Sejam quais forem as lutas que te descerem ao coração, resigna-te e não temas. Faze dos filhinhos o apoio firme na caminhada. 32 Todo sacrifício edificante no mundo expressa enriquecimento de nossas almas na Vida Eterna… Renuncia, pois, ao homem querido, honrando-lhe o coração, e aguarda o futuro com esperança.

33 E porque Marcela chorasse, receando o porvir, à face das contingências materiais, Silas afagou-lhe a cabeça e asseverou, prestimoso:

— Para mãos dignas jamais faltará trabalho digno. Contemos com a proteção do Senhor e marchemos com desassombro. Enxuga o pranto e ergue-te em espírito à Fonte do Sumo Bem!…

34 Nesse ínterim, parentes desencarnados da jovem senhora assomaram carinhosamente ao recinto, estendendo-lhe as mãos…

E nosso orientador confiou-lhes Marcela, chorosa, rogando-lhes ajuda para que a víssemos restaurada.

Retiramo-nos, em seguida.


3. Foi então que nossas perguntas explodiram, insopitáveis:

2 — Por que Marcela, meiga e honesta, era odiada pelo esposo, assim tanto? Por que a preferência de Ildeu pelas filhinhas, com tanto desdém pelo primogênito? E a separação em perspectiva? Seria justo procurar o nosso mentor fortalecer aquela mãezinha desventurada para o desquite, ao invés de incentivá-la à recuperação do amor e do devotamento do companheiro?

3 O Assistente sorriu com manifesto desencanto e obtemperou:

— Há nas anotações do Apóstolo Mateus n certa passagem, na qual afirma Jesus que o divórcio na Terra é permitido a nós outros pela dureza dos nossos corações. ( † ) 4 Aqui, a medida deve ser facultada à maneira de medicação violenta em casos desesperadores de desarmonia orgânica. Na febre alta ou no tumor maligno, por exemplo, a intervenção exige métodos drásticos, a fim de que a crise de sofrimento não culmine com a loucura ou com a morte extemporânea. 5 Nos problemas matrimoniais, agravados pela defecção de um dos cônjuges ou mesmo pela deserção de ambos do dever a cumprir, o divórcio é compreensível como providência contra o crime, seja ele o assassínio ou o suicídio… 6 Entretanto, assim como o choque operatório para o tumor e a quinina para certas febres são recursos de emergência, sem capacidade de liquidar as causas profundas da enfermidade, as quais prosseguem reclamando tratamento longo e laborioso, 7 o divórcio não soluciona o problema da redenção, porque ninguém se reúne no casamento humano ou nos empreendimentos de elevação espiritual, no mundo, sem o vínculo do passado, e esse vínculo, quase sempre, significa débito no Espírito ou compromisso vivo e delongado no tempo. 8 O homem ou a mulher, desse modo, podem provocar o divórcio e obtê-lo, como sendo o menor dos piores males que lhes possam acontecer… Ainda assim, não se liberam da dívida em que se acham incursos, cabendo-lhes voltar ao pagamento respectivo, tão logo seja oportuno.


4. E porque as nossas muitas interrogações pairavam no ar, o generoso orientador prosseguiu:

2 — No caso de Ildeu e Marcela, já meticulosamente estudado em nossa Mansão, temos duas almas em processo de reajuste, há vários séculos. 3 Para não nos perdermos em compridas perquirições, convém lembrar tão somente algumas notas da existência última, em que ambos, como marido e mulher, aqui mesmo no Brasil, se entregaram a difíceis experiências. 4 Ele, depois de casado, continuou irrequieto, entre a irresponsabilidade e a aventura, nas quais seduziu duas moças, filhas do mesmo lar. Primeiramente, enganou uma delas, abandonando a esposa que a Lei lhe havia confiado. 5 Passando, porém, ao convívio da segunda companheira, que patrocinava o desenvolvimento da irmãzinha menor, que os pais, à beira do túmulo, lhe haviam entregue, Ildeu não vacilou em aguardar-lhe a floração juvenil para submetê-la igualmente aos seus caprichos inconfessáveis. 6 Entrando em franca decadência moral, precipitou-as no meretrício, em cujas correntes de sombra as pobres criaturas se viram quais andorinhas aprisionadas na lama… 7 Abandonada a esposa, que era então a mesma companheira de agora, a sofredora mulher, incapaz de sofrear-se no insulamento, após cinco anos de expectativa e solidão, aceitou a companhia de um homem digno e trabalhador, com quem passou maritalmente a viver… 8 Os dias correram sobre os dias e, quando Ildeu, ainda relativamente moço, mas integralmente vencido pela intemperança e pelo deboche, regressou doente à cidade em que se havia consorciado, buscando o aconchego da esposa, cuja fidelidade carinhosa ele mesmo destruíra, não mais na ânsia de ajudá-la ou de amá-la e sim no propósito de escravizá-la, por enfermeira de seu corpo abatido, eis que a reencontra, feliz, junto de outro… 9 Movido de incompreensível ciúme, de vez que renegara o lar sem motivo justo, não suporta ver a alegria da companheira, matando-lhe o eleito do coração. 10 A breve tempo, todo o grupo que Ildeu infelicitou se reúne, inclusive ele próprio, na Esfera Espiritual, onde a justiça da Lei sopesa, os méritos e deméritos de cada um… 11 E, com o amparo de Abnegados Benfeitores, regressam as personagens do drama doloroso ao resgate na reencarnação, com Ildeu à frente das responsabilidades, por reter maiores culpas. 12 Marcela concorda em auxiliá-lo e retoma o posto antigo, ajudando-o na condição de esposa fiel. Roberto é o companheiro assassinado que volta, do qual Ildeu é devedor da própria vida. Sônia e Márcia são as duas irmãs que ele arrojou ao vício e à delinquência, dele esperando hoje, como filhas queridas, o necessário auxílio para a reabilitação.

13 O Assistente fez pequena pausa e acrescentou:

— Vocês não ignoram, porém, que a reencarnação no resgate é também recapitulação perfeita. 14 Se não trabalhamos por nossa intensa e radical renovação para o bem, através do estudo edificante que nos educa o cérebro e do amor ao próximo que nos aperfeiçoa o sentimento, somos tentados hoje pelas nossas fraquezas, como éramos tentados ainda ontem, porquanto nada fizemos pelas suprimir, passando habitualmente a reincidir nas mesmas faltas. 15 Segundo observam, Ildeu, displicente e surdo aos avisos da vida, é o mesmo homem do passado, buscando a suposta felicidade, fora do templo doméstico; desprezando a esposa, querendo estremecidamente às filhinhas nas quais revê as companheiras do pretérito e nada faz por perder a instintiva aversão pelo filhinho, em cujo contato adivinha o antigo rival, que lhe foi vítima da fúria arrasadora.


5. — Mas, — indagou Hilário, — se ele não encontra em Marcela o amor integral, por que razão, ainda agora, na presente romagem terrena, tê-la-ia desposado? A afetividade juvenil não é sinal de confiança e ternura?

2 — Sim, — encareceu Silas, bondoso, — é preciso considerar que nos achamos ainda longe de adquirir o verdadeiro amor, puro e sublime. 3 Nosso amor é, por enquanto, uma aspiração de eternidade encravada, no egoísmo e na ilusão, na fome de prazer e na egolatria sistemática, que fantasiamos como sendo a celeste virtude. 4 Por isso mesmo, a nossa afetividade terrestre, quando na primavera dos primeiros sonhos da experiência física, pode ser um conjunto de estados mentais, consubstanciando simplesmente os nossos desejos. E nossos desejos se alteram todos os dias… 5 Em razão disso, recordemos o imperativo da recapitulação. Nessa ou naquela idade física, o homem e a mulher, com a supervisão da Lei que nos governa os destinos, encontram as pessoas e as situações de que necessitam para superarem as provas do caminho, provas indispensáveis ao burilamento espiritual de que não prescindem para a justa ascensão às Esferas Mais Altas. 6 Assim é que somos atraídos por determinadas almas e por determinadas questões, nem sempre porque as estimemos em sentido profundo, mas sim porque o passado a elas nos reúne, a fim de que por elas e com elas venhamos a adquirir a experiência necessária à assimilação do verdadeiro amor e da verdadeira sabedoria. 7 É por isso que a maioria dos consórcios humanos, por enquanto, constituem ligações de aprendizado e sacrifício, em que, muitas vezes, as criaturas se querem mutuamente e mutuamente sofrem pavorosos conflitos na convivência uma das outras. 8 Nesses embates, alinham-se os recursos da redenção. Quem for mais claro e mais exato no cumprimento da Lei que ordena seja mantido o bem de todos, acima de tudo, mais ampla liberdade encontra para a vida eterna. 9 Quanto mais sacrifício com serviço incessante pela felicidade dos corações que o Senhor nos confia, mais elevada ascensão à glória do Amor Divino.


6. — Então, — aduzi, — nosso amigo Ildeu estará interrompendo o pagamento da dívida em que se empenhou…

— Isso mesmo.

2 — E Marcela? — Perguntou Hilário, — garantirá por ele a sustentação do lar?

— É o que esperamos e tudo faremos para auxiliá-la, já que o esposo, mais uma vez, faliu nos contratos assumidos.

3 — Não será lícito contar, matematicamente, com o heroísmo dela à frente da casa? — Insistiu meu colega.

— Quem poderá medir a resistência dos outros? — Falou Silas, sorrindo. — Marcela é senhora de si e, com a deserção do esposo, é chamada a encargos duplos. 4 Desejamos sinceramente que ela seja forte e se sobreponha às vicissitudes da existência, mas se resvalar para delituosos desequilíbrios, que lhe comprometam a estabilidade doméstica, na qual os filhos devem crescer para o bem, mais complicado e mais extenso se fará o débito de Ildeu, porquanto as falhas que ela venha a cometer serão atenuadas pelo injustificável abandono em que a lançou o marido. 5 Quem se faz responsável por nossas quedas, experimenta em si mesmo a ampliação dos próprios crimes.

6 Hilário meditou… meditou… e disse, em seguida:

— Imaginemos, porém, que Marcela e os filhinhos consigam vencer a crise, esmagando com o tempo as necessidades de que são agora vítimas… Figuremo-los terminando a atual reencarnação, com plena vitória moral em confronto com Ildeu, retardado, impenitente, devedor… 7 Se a esposa e os filhos, então definitivamente guindados à luz, dispensarem qualquer contato com a sombra, em franca ascensão às linhas superiores da vida, a quem pagará Ildeu o montante das dívidas em que se agrava?

8 Silas estampou significativo gesto facial e explicou:

— Embora estejamos todos, uns diante dos outros, em processo reparador de culpas recíprocas, em verdade, antes de tudo, somos devedores da Lei em nossas consciências. Fazendo mal aos outros, praticamos o mal contra nós mesmos. 9 Caso Marcela e os filhinhos se ergam, um dia, a plenos Céus, e na hipótese de guardar-se nosso amigo mergulhado na Terra, vê-los-á Ildeu na própria consciência, sofredores e tristes, quais os tornou, atormentado pelas recordações que traçou para si mesmo e pagará em serviço a outras almas da senda evolutiva o débito que lhe onera o Espírito, de vez que, ferindo os outros, na essência estamos ferindo a obra de Deus, de cujas leis soberanas nos fazemos réus infelizes, reclamando quitação e reajuste.

— Isso quer dizer…

10 A palavra de Hilário, porém, foi cortada pela observação do Assistente que, em lhe surpreendendo as ideias, falou firme:

— Isso quer dizer que, se Ildeu, mais tarde, desejar reunir-se a Marcela, Roberto, Sônia e Márcia, então redimidos nas Esferas Superiores, deverá possuir uma consciência tão dignificada e sublime quanto a deles, de modo a não se envergonhar de si mesmo, considerando-se a probabilidade de triunfo para a esposa e os filhinhos, nas provas árduas que o porvir lhe reserva.

11 — Deus meu!… — Clamou Hilário, triste, — quanto tempo então para uma empresa dessas!… E quanta dificuldade para o reencontro, se os entes queridos não se dispuserem a esperar!…

— Sim, — confirmou Silas, — quem se retarda por gosto não pode queixar-se de quem avança. “A cada um segundo as suas obras”, ( † ) ensinou o Divino Orientador, e ninguém no Universo conseguirá fugir à Lei.

12 Eu e Hilário, profundamente tocados pela lição, calamo-nos, confundidos, para orar e pensar.


André Luiz



[1] [No original: “examinava o pente de um revólver.”]


[2] Mateus, 19:7-8. — (Nota do Autor espiritual.)


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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