O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Antologia dos Imortais — Autores diversos — 3ª Parte


7n

Silva Ramos


1

USURÁRIO

1 Rico, vivia a sós, desde longínqua data.
Afagava o metal resplandecente e louro…
Nem um pão a ninguém. Somente ouro e mais ouro,
Entre pedras faiscando e baixelas de prata.


2 Conservava o vintém com a devoção de um mouro. n
Surge, porém, a dor que o despreza e maltrata
E, depois, vem a morte erguendo a foice ingrata,
Que o lança em desespero a fundo sorvedouro…


3 Sem o corpo de carne é um louco que esbraveja,
Quer governar, ainda, a migalha e a bandeja;
Enjaulado na sombra, excita-se e reage.


4 E conquanto pranteie e se lamente embora,
O infeliz Harpagão possui somente, agora,
Uma cama de terra e um cobertor de laje.


2

SOB OS VENTOS DA NOITE

1 “Ouro, luxo e prazer é o que a vida resume!” 29 n
Brada jovem mulher sobre doirada escória; 30
Vive, bela, a voejar na carne ardente e flórea
E morre num salão, em vagas de perfume…


2 No pesadelo, a sós, loucamente presume
Resguardar no sepulcro o carro de vanglória;
Mentaliza brasões na caverna marmórea,
Ergue em franco delírio a cabeça de nume…


3 Supõe-se em pleno baile e dança, viva, lesta,
Exige a gargalhar mais música na festa,
Pede vinho e caviar sem que ninguém a acoite… 39 n


4 Súbito, acorda e grita, a encravar as mãos finas
Nos troncos espectrais das tristes casuarinas 41
Que gemem a chorar, sob os ventos da noite…


3

DOM GIL MENDONÇA

1 Do castelo feudal que o vento forte enrija,
Brame Dom Gil Mendonça, em subida almenara:
— “Agasalho a ninguém!…” — Ressoa a voz preclara,
De florão a florão, de cornija a cornija.


2 Sempre à noite, há quem chore e beije a pedra rija.
— “É a neve!… Abra Dom Gil!…” — Cada rogo dispara
E assopra anseio e dor nos brasões de Carrara,
Sem que o dono feroz se comova ou transija.


3 Certo dia, no entanto, ouvem-se augúrios de algo…
Surge uma sombra leve e procura o fidalgo
Que, em vão, se estorce e ruge à porta que não cerra.


4 — “Que bandido me assalta?” — exclama, braço em riste,
Mas o vulto era a morte, e a morte, calma e triste, n
Acomoda Dom Gil numa fossa de terra.


4

INSTANTÂNEO NAS TREVAS

1 O Espírito de Luz desce à noite umbralina…
Doce nume a lenir as feridas da furna,
Escuta um malfeitor de face taciturna,
Que a estorcer-se, mordaz, acusa e desatina.


2 Anjo à frente de um monstro… A compaixão divina
Oferta ao frio e à sombra o bem por flâmea urna. n
Rende-se a fera humana e conta, em voz soturna,
A história de si mesmo, expondo a senda em ruína…


3 Amaldiçoava o pai que outrora lhe trouxera
A riqueza e o prazer em dourada quimera, n
Sem jamais dar-lhe amor ao peito maltrapilho…


4 Cala-se… O benfeitor beija-lhe o férreo pulso n
E cai-lhe, humilde, aos pés, sob pranto convulso…
O emissário dos Céus achara o próprio filho.


José Júlio da SILVA RAMOS — Emérito professor de Português do Colégio Pedro II, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, onde ocupou a cadeira nº 37, prosador primoroso e poeta lírico de profunda inspiração, Silva Ramos fez o curso de Direito na Universidade de Coimbra. Filólogo dos mais eminentes, soube influenciar Espíritos de escol quais Antenor Nascentes, Manuel Bandeira e Sousa da Silveira. Colaborou em diversas publicações, como A Semana, Revista da Academia Brasileira de Letras, Renascença, etc. “A magnanimidade de Silva Ramos” — disse Alcântara Machado — “é atestada não por este ou aquele capítulo, mas por todas as páginas da sua existência.” (Recife, Pernambuco, 6 de Março de 1853 — Rio de Janeiro, Gb, 16 de Dezembro de 1930.)

BIBLIOGRAFIA: Adejos; Pela Vida Fora; A Reforma Ortográfica; Centenário de João de Deus, conferência; etc.



[1] As poesias de números ímpares foram recebidas pelo médium Francisco Cândido Xavier e as de números pares pelo médium Waldo Vieira. Dispomo-las assim, por sugestão dos Amigos Espirituais.

[2] Leia-se com a, numa sílaba (Ectlipse).

[3] 29-30. doirada. Tendo usado a forma ouro no 1º verso, é natural que o filólogo e poeta, no 2º verso, preferisse a forma doirada, fazendo que os versos se tornassem mais eufônicos. A propósito, cf. uma observação de Garrett, em Camões citada por Sousa da Silveira, Trechos Seletos, pág. 433.

[4] 39-41. Leia-se ca-viar e ca-sua-ri-nas, com sinérese.

[5] Atente-se na epanástrofe: “…era a morte, e a morte…”

[6] Leia-se com hiato: flâ/me/a ur/na.

[7] dourada. Cf. a nota aos versos 29-30 deste capítulo.

[8] Observe-se a aposiopese : “Cala-se…”


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