O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Ave, Cristo! — Emmanuel — 2ª Parte


6

Solidão e reajuste

1 O outono de 256 começava entre lutas e expectativas.

No Império, então governado por Públio Aurélio Licínio Valeriano, ( † ) elevado à púrpura do poder pelos seus brilhantes feitos militares, a decadência continuava…

Não obstante as vitórias sobre os godos, ( † ) o Imperador não conseguia sustar a desagregação moral a desenvolver-se em toda a parte.

Em Roma, a dignidade sofria esquecimento e subversão.

Nas linhas provinciais crescia a irresponsabilidade e a indisciplina.


2 Taciano, contudo, acelerara demasiado a renovação interior para deter-se no mundo externo.

Arredado das questões políticas e filosóficas que o apoquentavam, sentia-se convocado pela vida ao reajuste de todas as suas conquistas e valores de ordem pessoal.

Novamente em Lião, ( † ) onde a vida se desdobrava com as readaptações necessárias, não ignorava que de Roma ( † ) não lhe faltariam dissabores imprevisíveis.

O suicídio de Helena e a moléstia do sogro, sem que ele pudesse revelar aos amigos a chave das explicações justas, criara-lhe uma atmosfera de antipatia e desconfiança.

Encontrava-se, por isso, mais angustiado, mais sozinho.

Chegara à vila com um pensamento obcecante a dominar-lhe o cérebro: — o desforço contra Teódulo. Saberia despejar sobre ele todo o fel de indignação e desprezo que lhe vertia da alma. Interpelá-lo-ia com rigor e vingar-se-ia sem piedade. Contudo, de regresso, veio a saber que o representante de Opílio fora chamado por Galba, à pressa, tendo seguido para a metrópole, dois dias antes.

Certo, a saúde de Vetúrio periclitava.

Sentia-se, porém, duramente ferido para seguir ao encontro do sogro.


3 Atreito às antigas tradições de orgulho em que plasmara a própria vida, reconhecia-se estrangeiro no seio da família Vetúrio, que, desde o berço, lhe envenenava a vida. Preferia aguardar o desfavor e a hostilidade, no campo de serviço a que se habituara, desde a juventude.

Temendo a intromissão de Galba, mandou reformar a casinha que pertencera a Basílio e embelezá-la, única propriedade que detinha em seu nome, e passou a viver ali, em companhia de Blandina, de Celso e de um velho casal de escravos, Servulino e Valéria, extremamente devotados a ele.

A antiga servidora era o sustentáculo eficiente das lides domésticas e o esposo convertera-se no professor competente das crianças.

Quinto Celso, já iniciado por Lívia, desde a meninice, na arte da leitura, era, aos onze anos, um prodígio de memória e discernimento. Francamente cristão, despendia longas horas com Blandina contando-lhe as histórias dos mártires do Evangelho e comunicando-lhe a fé ardente em Jesus.


4 A filhinha de Taciano ouvia, maravilhada, encontrando imenso consolo naquelas conversações.

Os sofrimentos de Lívia, o desaparecimento de Basílio, a morte de Helena, com as pomposas exéquias de que se fizera acompanhar, a enfermidade do avô e as graves preocupações paternas impuseram-lhe profundo abalo psíquico. Chorava sem motivo, padecia inexplicáveis insônias e, não raro, demorava-se no leito, dias e dias, sob fortes crises do coração descompassado.

A excursão em Neápolis ( † ) perdera para ela os frutos de que parecia revestir-se.

Diariamente, pela manhã, formulava com o pai a prece habitual a Cíbele, mas, no fundo, sentia que o seu pensamento passara a gravitar em torno daquele Cristo, amoroso e sábio, que se achava no centro de todas as observações do irmão adotivo.

Não ignorando a aversão do genitor pelos cristãos, ela se abstinha, cuidadosamente, na presença dele, de qualquer comentário tendente a magoar-lhe os princípios.

Pouco a pouco, as opiniões e os apontamentos de Celso conquistaram-lhe a alma simples e sensível para a nova fé.


5 O rapazinho, terminados os estudos e as tarefas de cada dia, ainda encontrava tempo para rápidas leituras do arquivo de Basílio, que Taciano conservava respeitosamente.

Daí o benfeitor paternal, quando nos entendimentos costumeiros, quer nos passeios pelo campo, quer às refeições no triclínio, surpreender-se com as observações do menino, judiciosas e sensatas, nas quais, todavia, Quinto Celso evitava igualmente as menores referências ao Cristianismo de maneira direta.

Servulino não se esquecia de rogar às crianças o devido respeito às convicções do amo e, assim, os dois irmãos espirituais comungavam o mesmo idealismo e as mesmas esperanças na vida íntima, cimentando a fé que lhes irmanava os corações.

Noite a noite, viviam os habitantes da casinha do bosque doces e abençoadas horas de música e alegria.


6 Qual se conhecesse os traços psicológicos de Taciano, de longa data, Celso adquirira maneiras especiais de orientar a conversação.

Certa feita, porque o patrício desencantado se queixasse das tragédias passionais do seu tempo, com aflição e desânimo, o jovem falou sutil:

— Mas, meu pai, o senhor não julga o mundo necessitado de uma ideia nova? Uma ideia que penetre o sentimento da criatura, renovando-lhe o modo de pensar?

Taciano fitou-o, espantado.

Que entenderia Celso dos problemas da vida?

Embora admirado, revidou firme:

— Não creio, meu filho. Nossas tradições e nossas leis são suficientes. Basta nos adaptemos a elas, de vez que as diretrizes estão prontas. Não admites que as Divindades sabem reger nossas vidas?

— Sim, meu pai, — ajuntou o pequeno, pensativo, — o senhor tem razão… Contudo, os deuses parecem tão longe! Dizem-nos que Júpiter garante o mundo em toda a parte, que Ceres é a protetora das colheitas, que Minerva dirige os sábios, mas não acha que precisávamos de alguém que, em nome dos deuses, viesse ao mundo conviver com os homens, vivendo-lhes as dificuldades e as dores?… As Divindades ajudam as pessoas, de conformidade com os sacrifícios que recebem nos templos. Assim, a proteção do Céu varia com a posição dos homens. Há quem possa levar aos santuários touros e aves, incenso e moedas, entretanto, a maioria dos habitantes de uma cidade é gente pobre, que apenas conhece o sacrifício e a servidão… O senhor acredita que os escravos são deserdados do Céu? Os que mais trabalham devem ser os menos favorecidos?


7 O filho de Varro recebia semelhantes palavras, pronunciadas com humildade e carinho, por jatos de luz interior…

Ele mesmo fora bem nascido, crescera bafejado pelo prestígio do ouro, contudo, as surpresas do destino, gradativamente, despojavam-no de todas as regalias e privilégios.

A morte da esposa e o desagrado da parentela situavam-no à beira de total empobrecimento econômico.

Aguardava do cunhado e genro o último golpe.

Não tardaria, talvez, a conhecer a dolorosa condição dos homens sentenciados à subserviência, na subalternidade e na sombra.

Em semelhante curva da caminhada na Terra, experimentava o sopro da adversidade a enregelar-lhe o coração.

Teria bastante fé nos dias incertos que se avizinhavam?

As observações do filho adotivo acordavam-lhe na alma esses cruciantes pensamentos.


8 Empalideceu, ligeiramente, e considerou:

— Sim, sim, as tuas ponderações são apreciáveis, contudo, não podemos olvidar que a nossa existência permanece estruturada sobre o alicerce das classes.

E, recordando sábias interpretações dos antigos romanos, acrescentou:

— A sociedade é um corpo do qual somos partes integrantes. A cabeça içada sobre os ombros guarda a missão de raciocinar e decidir. As mãos e os pés foram feitos para servi-la. No organismo de nossa vida política, o patriciado representa os sentidos tais como a visão, a audição e o tato, que auxiliam o cérebro a examinar e discernir, ao passo que os plebeus constituem os membros incumbidos do trabalho e da submissão. Não poderíamos inverter a ordem. O nascimento e a posição, o nome e a conquista são os pilares de nosso equilíbrio.


9 O jovem sorriu, com inteligência, e obtemperou, fortemente inspirado:

— Mas, a dor nos pés não é tão desagradável quanto a dor na cabeça? Uma ferida nas mãos não será tão incômoda quanto um golpe no rosto? Estou certo, meu pai, de que cada pessoa respira no lugar que a Natureza lhe concedeu, mas todos os homens merecem respeito, felicidade e consideração, entre si… Aceitando essa verdade, creio que se a fé pudesse operar em nós, por dentro, fazendo-nos mais amigos e mais irmãos uns dos outros, a fim de que nós mesmos começássemos o serviço da bondade, sem qualquer constrangimento, a harmonia do mundo seria mais perfeita porque a fortuna dos felizes não seria perturbada pela desfortuna dos pobres, o riso de alguns não seria prejudicado pelos gemidos de tantos…

O viúvo de Helena meditou por momentos e concluiu:

— As tuas referências são interessantes e valiosas. Inegavelmente, para alcançarmos a realização a que te reportas, precisaríamos no Império de um grande reformador… um homem à altura de todas as nossas dignidades públicas. Provavelmente, um filósofo, tomando as rédeas do governo, sob a inspiração da bondade e do direito, saberia compreender as nossas necessidades comuns…


10 Celso permutou com Blandina um olhar de inexprimível alegria e acentuou:

— Mas, papai, o senhor não acredita que esse renovador já tenha vindo?

Taciano compreendeu a velada alusão a Jesus-Cristo, esboçou um gesto de enfado e modificou o rumo da conversação, todavia, na solidão de si mesmo, refletia sobre os argumentos daquela criança, que a devoção de Lívia lhe havia legado e que, paulatinamente, passava a lhe ocupar o coração como pequeno mas seguro orientador.


11 Várias semanas haviam transcorrido, quando um correio de confiança da casa de Galba trouxe inquietantes notícias de Roma.

Dignara-se Lucila escrever apenas à irmã, de modo a torturar o genitor com todo o fel de malquerença que lhe extravasava da alma. Exigia que Blandina fosse morar na capital do Império, em sua casa, asseverando haver perdido a confiança no pai que não quisera evitar o deplorável suicídio de Helena. Achava-se convicta de que ela procurara o próprio fim, constrangida pelo procedimento de Taciano, que, por anos consecutivos, parecia recusar-lhe o carinho. Notificava que o avô, acamado entre a enfermidade e o túmulo, resolvera vender todas as suas propriedades nas Gálias, ( † ) para que a família se desvencilhasse de recordações amargas, comunicando, ainda, que, em breves dias, o patrício Álcio Comúnio entraria na posse da vila, que Teódulo não mais voltaria e que, por isso, lhe aconselhava a mudança para Roma, sem mais tardar. Aguardaria, porém, uma resposta clara, a fim de incumbir Anacleta e outras servidoras de lhe constituírem o séquito necessário em viagem. Rogava a remessa de joias e lembranças maternas para o seu tesouro afetivo e, por último, relacionava os interesses e as vantagens da transferência, enunciando a esperança de que Blandina, por lá, descobriria uma existência diversa, suscetível de curar-lhe todas as tristezas e abatimentos incompreensíveis.


12 Taciano leu a carta, mal afogando as lágrimas.

Nunca poderia aguardar semelhante desacato.

A decisão do sogro, desfazendo-se das terras, significava para ele o mais forte rebaixamento de nível social, entretanto, a miséria não lhe doía tanto quanto o ingrato conceito da filha.

Lucila não possuía a mais leve razão de feri-lo.

Lembrou-se, contudo de Quinto Varro, o genitor desvelado que tudo lhe dera sem nada receber e, mais uma vez, ponderou quão amargo lhe fora o caminho no mundo.

Enxugou o pranto, recompôs a fisionomia e apresentou a mensagem à filhinha.

Blandina não ocultou a revolta que as notícias lhe impunham e respondeu, de imediato, à irmã que não pretendia abandonar a companhia paterna, enquanto vivesse.

O emissário de Galba tornou à metrópole, conduzindo a curta missiva com todos os objetos do uso particular de Helena e, desde então, indevassável silêncio pesou nas relações familiares, entre Lucila e o pai.


13 Volvidos alguns dias, Álcio apossou-se da herdade, requisitando Servulino e a esposa, cujos serviços lhe pertenciam por direito de compra, e Taciano, obrigado a contratar a cooperação de uma doméstica, assumiu, por sua vez, a tarefa de educador dos filhinhos, porquanto não mais dispunha de recursos materiais capazes de satisfazer a todos os seus desejos.

O inverno chegara, ríspido.

As árvores enregeladas, com a galharia desnuda dirigida para o alto, pareciam espectros a suplicarem o calor da vida.

Meditabundo, observava Taciano a natureza castigada, recordando o próprio destino.

O frio da adversidade assediava-lhe o coração.

Não fossem Blandina e Celso, frágeis rebentos da vida a lhe reclamarem carinho, e talvez se rendesse ao sofrimento moral, até que a morte o visitasse por mensageira de paz e libertação. Todavia, a ternura e a confiança com que lhe seguiam os passos, refundiam-lhe as forças. Disputaria com os monstros invisíveis da sorte a fortaleza de si mesmo, a fim de doar às duas crianças uma vida melhor que a dele. Renunciaria a todos os prazeres, para que elas vivessem sempre livres e felizes.


14 Quando a primavera tornou à paisagem do Ródano, ( † ) encarou a necessidade de ausentar-se de casa, na conquista de maior conforto doméstico. E pela vez primeira, qual havia acontecido ao próprio pai, em outro tempo, percebeu quão dura se fazia a existência para o homem que se propusesse conseguir com dignidade o próprio pão.

A classe média não passava de perigoso e escuro corredor, entre a planície miserável dos escravos e a dourada montanha dos senhores.

Sacudido por aflitivas emoções, considerou os obstáculos que se antepunham entre ele e a vida de sua época.

Entretanto, não lhe cabia recuar.

Consultou diversos amigos, contudo, era difícil instalar-se em qualquer posição vantajosa, sem a proteção dos altos dignitários da Corte e semelhante amparo se fazia agora inacessível para ele.

A saúde da filha reclamava serviços assistenciais imediatos e isso demandava recursos crescentes.

De tentativa a tentativa, em busca de trabalho decente, ocasiões surgiram em que invejou a sorte dos ferreiros e dos gladiadores humildes que podiam beijar os filhinhos, cada noite, orgulhosos e felizes, dentro da simplicidade que lhes assinalava a bênção de viver.


15 Desesperado, entre as necessidades domésticas e os obstáculos do meio, resolveu concorrer às corridas de bigas, ( † ) na disputa de prêmios pecuniários.

Possuía dois carros leves e sólidos, bem como excelentes cavalos de tiro.

Na estreia, foi atingido pelos olhares ridiculizantes de muitos daqueles que, na prosperidade, lhe frequentavam o ambiente doméstico… Diversos companheiros da véspera orgulhosamente lhe recusaram as saudações usuais, em lhe observando a participação em atividades plebeias, mas tanto engenho e tanta destreza demonstrou nas corridas que, em breve, se fez o favorito de inúmeros apostadores.

Admirado por alguns e ironizado por muitos, o filho de Varro algo encontrara em que prender a atenção.

Odiava a turba festiva que lhe aclamava o nome nas competições vitoriosas, experimentava indisfarçável repugnância pelos ajuntamentos de homens e mulheres gozadores da vida, mas, no fundo, sentia-se satisfeito com a oportunidade de conquistar, ao preço de esforço próprio, o dinheiro indispensável às despesas do lar que novamente passara a desfrutar o mais amplo conforto.


16 Contratara competente professor para os jovens e a vida transcorria em casa numa abençoada atmosfera de paz, somente perturbada pela precária saúde de Blandina, que jamais pudera refazer-se de todo. Doente e abatida, a menina via o tempo escoar-se, sob o carinho inexcedível de Taciano e de Celso, qual se fora um anjo enfermo, prestes a desferir o voo para o paraíso.

Por mais fosse conduzida pelas abnegadas mãos paternas aos passeios no rio ou na floresta, nunca mais lhe assomaram à face as cores róseas e sadias da infância. Muitas vezes, era surpreendida pelos familiares, em lágrimas convulsivas, e, quando interpelada por eles, informava, triste, que vira a sombra de Helena a rogar-lhe orações.

Taciano sabia que os entendimentos da filhinha com Celso converteram-na ao Cristianismo, no entanto, transformara-se-lhe demasiado a alma para subtrair-lhe à torturada adolescência o único manancial de consolo capaz de propiciar-lhe a paz e o conforto, a esperança e a alegria.

Pessoalmente, era o mesmo devoto de Cíbele, o invariável defensor dos deuses imortais, todavia, as amarguras da Terra lhe haviam ensinado ao coração que a felicidade espiritual não é a mesma para todos.


17 Dois anos correram, apressados…

Celso, robusto e bem disposto, era agora valioso companheiro do pai adotivo, cooperando nos trabalhos da pequena cavalariça, mas Blandina piorara sensivelmente.

Se a jovem tentava qualquer número de harpa ou de canto, longos acessos de tosse obrigavam-na a interromper-se.

O pai, agoniado, não poupava sacrifícios para restabelecer-lhe a saúde, mas a Natureza parecia condenar a doente a infindáveis padecimentos.

De passagem por Lião, afamado médico gaulês de Mediolanum ( † ) n foi chamado a opinar e aconselhou a Taciano conduzisse a menina à cidade em que residia para meticuloso tratamento de sua especialidade. Provavelmente a temporária mudança cooperaria para reerguer-lhe as forças.

O pai, amoroso e dedicado, não vacilou.


18 Sem recursos para despesas que exorbitassem o orçamento comum, contraiu vultoso empréstimo e partiu com os filhos, no verão de 259.

Não obstante, porém, os enormes débitos contraídos e apesar dos sacrifícios levados a efeito, no processo de cura a que foi submetida, a enferma regressou sem melhoras.

As lutas paternas continuaram, tormentosas…

Desdobravam-se os dias inquietantes, quando inesperada visita veio surpreendê-los.

Anacleta, a leal amiga, vinha despedir-se.

Tendo ultrapassado meio século de existência, concluíra que não mais poderia tolerar as agitações da cidade imperial.

Afirmava-se exausta.


19 Blandina e o pai ouviram, apavorados, as notícias de que se fazia portadora.

O velho Opílio morrera, atormentado por grandes pesadelos, no inverno de dois anos antes e Galba, talvez entediado dos excessos a que se rendera durante toda a vida, tentara a mudança para a Campânia, no que fora impedido pela esposa, cada vez mais ávida de emoções e de aventuras…

Lucila, desde a morte de Helena, quando se afastara em definitivo da influência do antigo lar, parecia tomada por incompreensível fome de prazeres. Assim é que, enquanto o marido se retirava para o campo, confiava-se à perniciosa influência de Teódulo, que fixara residência no palácio de Vetúrio, qual se lhe fora afeiçoado familiar. O intendente acompanhava-a em múltiplas festas e favorecia-lhe afeições ilícitas, até que, um dia, apanhado de surpresa por Galba, em posição equívoca, no tálamo conjugal, foi por ele apunhalado sem comiseração.


20 Cometido o crime, que, como tantos outros passara despercebido das autoridades bem subornadas, o irmão de Helena acamou-se, delirando…

Por alguns dias, ela própria, Anacleta, velara por ele, mas, fatigada, obedeceu às instruções da dona da casa, que lhe recomendava descanso. Na primeira noite, contudo, em que se entregou ao repouso, na câmara que lhe era própria, Galba faleceu misteriosamente, asseverando algumas escravas de confiança, em surdina, que o amo fora envenenado pela própria mulher, com uma tisana preparada por ela mesma.

Taciano e a filhinha choraram estas desgraças.

A perda moral de Lucila aterrava-os.

Insistiram com a velha amiga para ficar, entretanto, a devotada servidora confessou que se fizera cristã e desejava a solidão para reconsiderar o caminho percorrido. Deliberara, desse modo, voltar à ilha de Cipro, atendendo ao pedido afetivo dos derradeiros parentes que lhe restavam.

Acompanhada por dois sobrinhos, que lhe dispensavam cuidados especiais, não se demorou por mais de uma semana, despedindo-se então dos amigos queridos, para sempre.


21 Impressionada, talvez, com as aflitivas informações trazidas de Roma, Blandina não mais se ergueu.

Debalde Taciano rodeou-a de surpresas e carícias… Em vão, Quinto Celso contou-lhe renovadas histórias de heróis e de mártires…

A doente renunciou a toda espécie de alimentação e mais se assemelhava, jungida ao leito alvo, a um anjo esculturado em marfim, unicamente animado pelos olhos escuros, ainda vivos e brilhantes.

Certa noite, justamente na antevéspera de grandes espetáculos em homenagem a patrícios ilustres, nos quais Taciano seria investido de grandes responsabilidades, a enferma chamou-o e apertou-lhe carinhosamente as mãos.

Permutaram inesquecível olhar, em que exprimiam toda a imensa dor que lhes estrangulava o espírito, adivinhando próximo adeus.

— Pai, — disse ela, melancólica, — agora não me demorarei a reunir-me aos nossos…


22 Taciano procurou, em vão, represar as lágrimas que lhe inundavam os olhos.

Tentou falar, tranquilizando-a, mas não conseguiu.

— Sempre fomos unidos, paizinho! — Continuou a moça, triste, — até hoje, nada fiz sem a sua aprovação… Queria, assim, pedir o consentimento seu para que eu possa realizar um desejo, antes de partir…

E sem que o genitor tivesse tempo para qualquer indagação, acrescentou:

— O senhor permite que eu aceite a morte, na fé cristã?

O patrício recebeu a pergunta como se fora apunhalado nos tecidos sutis da própria alma. Uma dor intraduzível, na qual se misturavam a saudade e o ciúme, o fel e a angústia, fê-lo dobrar a cerviz, melancolicamente…

— Tu também, minha filha? — Inquiriu ele, em pranto. — Meu pai era dele, minha mãe abraçou-o, Basílio imolou-se por ele, Lívia morreu louvando-lhe o nome, Anacleta despediu-se de nós, procurando-o, Quinto Celso, o filho que o destino me legou, nasceu pertencendo-lhe… Sempre o Cristo!… Sempre o Cristo a buscar-me, a atormentar-me e a perseguir-me!… Eras tu a única esperança de meus dias! Julguei que o Carpinteiro Galileu te poupasse!… Entretanto… tu também… Ó Blandina, porque não amas teu pai como teu pai te ama? Todos me abandonaram… porque me deixarás também? Estou atribulado, vencido, sozinho…


23 A jovem movimentou as mãos ressequidas e pálidas, com dificuldade, e acariciou-lhe a cabeça prematuramente encanecida que pendia para ela em choro convulso.

— Não sofra, paizinho! — Pediu, resignada. — Eu quero Jesus, mas o senhor é tudo o que eu tenho!… Nada encontrei na vida igual ao seu carinho… Seu amor é a minha riqueza!… Desejo, antes de tudo, seguir-lhe os passos… Não vê que sempre rezamos juntos, pela manhã, a oração de Cíbele? Tudo será para mim, segundo a sua vontade…

A jovem interrompeu-se por alguns instantes, mostrou sinais de indefinível alegria no rosto descarnado e continuou:

— Hoje, à tardinha, Lívia esteve aqui… Trouxe uma harpa enorme, adornada com rosas de luz… Cantou para mim o hino às Estrelas com a mesma voz do nosso encontro às margens do Ródano… Disse-me que estaremos todos juntos em breve e que eu não deveria apoquentá-lo, caso o senhor não consinta que eu me faça agora cristã… Asseverou que a vida é divina e eterna e que não temos motivo para atormentar-nos uns aos outros… Afirmou-me que o amor de Jesus glorifica-nos o caminho e que, com o tempo, brilhará em toda a parte… Além de tudo, pai querido, nunca entrarei num Céu em que o senhor não esteja…


24 Fixou os olhos profundos e fulgurantes no teto e exclamou:

— Jesus é também o amor que espera sempre… Haverá perdão para todos…

Taciano ergueu o semblante e fitou-a, contristado.

Teria razão para contrariar a filha querida na hora extrema? Poderia, em sã consciência, impedir-lhe o acesso à fé que ele até então detestara? Por que negar a Blandina o conforto de sua aquiescência numa questão puramente espiritual? Experimentou grande remorso, em face do desabafo que pronunciara, e, abraçando a doentinha, falou, sincero:

— Perdoa-me, filha! Esquece as minhas palavras… Dize o que pretendes… Podes abraçar o Cristianismo, livremente… Nosso amor não é uma cadeia para o sofrimento e sim a nossa comunhão na alegria perfeita! Manda, Blandina, e obedecerei!…


25 Havia tanta lealdade quanta ternura naquelas frases que a enferma sorriu um sorriso de enlevo e contentamento e, então, rogou, humilde:

— Papai, na igreja de São João há um velhinho de nome Ênio Pudens que eu desejaria fosse rogado pessoalmente pelo senhor a fazer comigo uma oração e… quando eu morrer, ficaria contente se o senhor depositasse o meu corpo no sepulcro dos cristãos… Sei que lá reina a alegria com a certeza da vida eterna…

Taciano tentou dissuadi-la dessas ideias. Porque tamanha preocupação com a morte, quando a esperança lhes descerrava magnífico futuro à frente?

Esforçando-se para mostrar tranquilidade e segurança, prometeu cumprir-lhe a vontade, e passou a conversar em outros assuntos.

Referiu-se à festa que a cidade esperava, ansiosamente, e salientou o propósito de conquistar expressivo prêmio.

Adquirira dois cavalos vigorosos, procedentes de Capadócia, ( † ) que pareciam possuir invisíveis asas nas patas.

Aguardava, por isso, um triunfo espetacular.

Estava convicto de que a filhinha, muito em breve, se mostraria orgulhosa e linda nas corridas, abrilhantando-lhe as vitórias.

Blandina sorria, satisfeita e confortada.

Mais serena, aquietou-se na expectação do dia seguinte.


26 De espírito dilacerado, Taciano viu chegar a manhã e, consoante a promessa que formulara, dirigiu-se discretamente à igreja de São João, onde não teve dificuldade para encontrar o velhinho indicado.

Com cerca de oitenta anos, curvado e trêmulo, Ênio Pudens, o mesmo companheiro de Quinto Varro quando este se fizera conhecido por sucessor de Ápio Corvino, ainda trabalhava. Não obstante desfrutar o respeito de todos, na posição de cooperador mais velho da comunidade, era um exemplo vivo de fé, serviço, diligência e abnegação.

Recebeu Taciano, com atenção e bondade, colocando-se à disposição dele para o que lhe pudesse ser útil.

A simplicidade do ambiente conferia-lhe imensa paz ao coração.

A alma de Taciano sentia sede de tranquilidade como o deserto suspira pela bênção da água.


27 Interpelado pelo patrício, com respeito ao pretérito, Ênio informou-lhe haver conhecido ambos os Corvinos, o velho e o moço, mostrando-lhe, satisfeito, as recordações daquele que jamais poderia imaginar fosse o infortunado pai do seu interlocutor.

O filho de Varro observou a dependência em que o genitor vivera consagrado à caridade e à fé.

Deteve-se na contemplação do leito pobre, carinhosamente conservado, e refletiu nas amarguras que, de certo, teriam ali assediado o coração paterno.

Nunca poderia supor que ele mesmo, Taciano, bateria àquelas portas implorando socorro para a filha doente.

Mergulhado em profundo alheamento, foi despertado pela voz de Pudens que declarava estar pronto para segui-lo.


28 Partiram, assim, em demanda do ninho agasalhado entre as árvores, onde Blandina recebeu o apóstolo com alegria e reverência.

O missionário conhecia o genro de Vetúrio, de longa data. Sabia-o adversário ferrenho do Evangelho e manifesto perseguidor da igreja torturada. Contudo, a pobreza limpa em que vivia com os filhos, a coragem moral nos reveses sofridos e o bom ânimo com que enfrentava os golpes da sorte, à frente da opinião pública, inspiravam simpatia e respeito ao seu espírito amadurecido.

Acanhado a princípio, a pouco e pouco se tornou mais comunicativo. As perguntas da pequena enferma, a conversação judiciosa de Celso e o olhar respeitoso do chefe da casa deixavam-no mais à vontade.

O antigo religioso refletiu quão enormes teriam sido as aflições caídas sobre aquele homem tenaz que o escutava atentamente, mas, avelhentado na experiência e na dor, calou as indagações no próprio íntimo, para só expandir-se em carinho, tolerância, bondade e compreensão.


29 Ao fim de uma hora de sadio entendimento, atendendo aos rogos da doentinha, o ancião pronunciou, em voz alta a prece dominical:

Pai Nosso, que estais no Céu santificado seja o vosso nome; venha a nós o vosso reino, faça-se a vossa vontade, assim na Terra como nos Céus; o pão nosso de cada dia dai-nos hoje, perdoai as nossas dívidas assim como perdoamos aos nossos devedores, não nos deixes cair em tentação e livrai-nos de todo mal, porque vosso é o reino, o poder e a glória para sempre. Assim seja. ( † )

O viúvo de Helena ouviu a rogativa, mudo e emocionado, comovendo-se com a doce confiança dos filhos que a repetiam, palavra por palavra.

Era o seu primeiro contato com alguma lembrança do Cristo que nunca pudera compreender.

Diante daquele quadro constituído por um velhinho que nada mais esperava do mundo senão a paz do túmulo, e por duas crianças que se achavam investidas do direito de tudo aguardarem da Terra, identificados na mesma vibração de alegria e de fé, não pôde impedir que o pranto lhe umedecesse os olhos.


30 Ouviu, com respeito inexcedível, todos os apontamentos do hóspede e, quando Ênio se despediu, atencioso, rogou-lhe não lhe esquecesse os filhos, Blandina e Celso eram cristãos fervorosos e ele, na posição de pai, não lhes contrariaria os sentimentos.

A enferma fitou-o, jubilosa.

Inexprimível serenidade envolveu a casa naquela noite inesquecível. Como se houvera sorvido delicioso calmante, a menina adormeceu tranquilamente. Taciano, por sua vez, entregou-se ao sono pesado e sem sonhos…

Ao amanhecer do dia seguinte, contudo, acordou com indefinível tristeza a turbar-lhe o íntimo.

Recordou que a filha na véspera assumira compromisso moral com a nova fé e, por isso, sozinho, procurou a imagem de Cíbele, existente num oratório particular, anexo ao quarto de Blandina.

Pela primeira vez, depois de muitos anos, repetiu a sós, consigo mesmo, a sua rogativa habitual à Grande Mãe.


31 Nunca se vira imerso em tamanho frio espiritual. Jamais se sentira tão angustiosamente só. Guardava a impressão de que ele era o único oficiante vivo num templo de deuses mortos…

Ainda assim, não renunciaria à fé pura da infância.

Amaria Cíbele, cultuaria Baco e esperaria por Júpiter, o grande senhor.

Não podia modificar-se.

Orou em lágrimas e, depois de abraçar os filhos, dirigiu-se para o circo, onde prepararia o carro de sua propriedade para as corridas da tarde.


32 Mais tarde, voltou ao lar para leve refeição e, não obstante registar os padecimentos de Blandina singularmente agravados, tornou à cidade para o grande prélio.

No limiar do crepúsculo, o local regurgitava de gente.

Liteiras enfileiradas davam notícia da expressão aristocrática da festa. Bigas e quadrigas desfilavam, à pressa, aqui e ali… Músicos disfarçados em faunos tangiam cítaras e trompas, alaúdes e pandeiros, animando a turba que não se fatigava na reprodução de urros selvagens. Cortesãs admiravelmente trajadas e bacantes recendendo aromas perturbadores, matronas e virgens de Roma e das Gálias, exaltadas e seminuas, gritavam os nomes dos favoritos.

Taciano contava com a simpatia geral.

Tão logo formou na linha inicial da competição, viu-se aclamado por centenas de vozes, que partiam, não somente do povo, mas também das galerias de honra onde se acomodava o Propretor com o seu vasto séquito vistoso e farfalhudo.


33 Naquele dia, contudo, o predileto da multidão parecia surdo e indiferente.

De pensamento voltado para a filha bem-amada, a debater-se com a morte, não esboçou o mínimo gesto de reconhecimento na direção da massa que o saudava, delirantemente…

Ao sinal de largar, afrouxou as douradas rédeas e os cavalos fogosos dispararam. O candidato à vitória, porém, não se sentiu seguro como de outras vezes…

Depois de alguns instantes de galope desenfreado, notou que a cabeça como que se desequilibrara nos ombros. Esforçou-se para retomar o comando da biga a desvairar-se, veloz, mas turvou-se-lhe a visão, repentinamente. Deixou de escutar os gritos da massa frenética, guardando a impressão de que um vazio se lhe formara no cérebro e, incapaz de controlar-se, inclinou-se para a frente, apoiando-se nas bordas do carro sem domínio.


34 Os animais, contudo, plenamente desarvorados, atiraram o veículo contra enorme coluna de um dos arcos ornamentais da pista, convertendo-o em pedaços.

Colhido então de imprevisto, Taciano sofreu tremenda queda, indo arrojar-se de encontro aos ferros retorcidos, que lhe feriram o frontal, ofendendo-lhe seriamente os olhos.

Ante a gritaria da multidão, alguns servidores dos jogos públicos depressa o socorreram, retirando-o, em sangue.

O valoroso campeão achava-se desacordado. E, enquanto dois prestimosos escravos o reconduziam, cuidadosamente, de retorno à casa, as mesmas vozes que antes o aplaudiam apupavam-no agora com ditérios e ingratas observações.

Os jogadores que haviam perdido importantes apostas voltavam-se, desapontados, contra o ídolo da véspera…


35 O patrício, ainda incapaz de raciocinar? embora já pudesse gemer, foi colocado no leito sob o angustiado olhar de Quinto Celso.

O rapaz esmerou-se por ocultar o acontecimento doloroso a Blandina e prestou ao pai adotivo os serviços assistenciais ao seu alcance. Reconhecendo-se, porém, infinitamente só para resolver por conta própria, valeu-se do cavalo que costumava servi-lo e correu ao abrigo dos cristãos.

O velho Ênio ouviu-lhe as notícias, compadecidamente.

Recambiou Celso ao lar e tomou um carro para acudir ao ferido. Em pouco tempo, assumia a direção da casinha do bosque por força das circunstâncias.

Transportou consigo os unguentos curativos de que podia dispor e, munido de panos de linho, começou a limpar as escoriações que ainda sangravam, mas, tomado de penosas apreensões, verificou que Taciano estava cego. O orgulhoso patrício que a vida parecia castigar paulatinamente, despojando-o de todos os privilégios que o faziam temido e respeitado, via-se agora dilacerado no próprio corpo. Nunca mais tornaria às competições da arena, e difícil lhe seria conseguir trabalho e sustentar-se com o esforço das próprias mãos…


36 Enquanto meditava, reparou que o ferido recuperava integralmente a razão. Recrudesciam-lhe os gemidos abafados.

O velhinho dirigiu-lhe algumas palavras encorajadoras, explicando que as equimoses se achavam devidamente medicadas.

Reconhecendo o benfeitor, Taciano agradeceu e pediu que a luz se fizesse, pois se sentia incomodado, aflito, naquela escuridão.

O manto da noite realmente havia caído sobre aquele dia infortunado, mas no quarto duas tochas ardiam, brilhantes.

— Senhor, — disse o ancião, profundamente pesaroso, — a câmara está iluminada, entretanto, os vossos olhos…

A frase perdeu-se, reticenciosa, no ar.

Indescritível pavor assomou ao semblante do ferido.

O filho de Varro levou as mãos à cabeça e compreendeu a extensão do desastre.


37 Ênio e Celso que o seguiam, ansiosos, acreditaram que o infortunado romano explodiria numa crise de exasperação e dor, mas o viúvo de Helena aquietara-se incompreensivelmente… Das órbitas apagadas e sanguinolentas, grossas lágrimas rebentaram abundantes. Como se devesse dar informações de si mesmo ao filho e ao amigo, exclamou em voz comovedora:

— Estou cego! Mas os deuses concedem-me ainda, a graça de chorar!…

Em seguida, tateante e trôpego, dirigiu-se a câmara de Blandina, pedindo a Ênio que, antes de entrar, deixasse o quarto em sombra.

Aproximou-se da filha, afagando-lhe os cabelos.

A enferma deu-lhe notícia das dores que a atormentavam e, num supremo esforço, o pai consolou-a, rogando desculpas por haver tardado tanto…

Velado pelas trevas, descreveu-lhe a festa da tarde. Contou-lhe que centenas de mulheres haviam mostrado trajes originais de grande beleza. O espetáculo fora magnífico. Imaginou surpreendentes novidades para encanto da enferma que se habituara a receber-lhe as narrações do regozijo público.


38 Blandina osculou-lhe as mãos, declarou alegrar-se com a presença de Pudens e acomodou-se tranquila.

O ancião e Celso acompanharam a cena, comovidíssimos.

A força moral de Taciano impressionava-os.

E, noite a noite, como se estivesse regressando das funções no circo, o genitor abraçava a filhinha, às escuras, com ela conversando longamente, de modo a sustentar-lhe a impressão de que tudo lhes corria em clima de paz e segurança.

A situação dolorosa prolongou-se por uns quinze dias de preocupações e amarguras.

Nenhum amigo de outro tempo apareceu, sequer.

Nenhum admirador da arena se lembrou da gentileza de uma visita.

Somente o velho Pudens alimentou, firme, a amizade que passara a consagrar-lhes. Aliando-se ao jovem Quinto Celso, quais se fossem velhos amigos, providenciavam, juntos, a solução de todas as necessidades domésticas, aliviando Taciano tanto quanto lhes era possível.

O rapaz devotou-se ao pai adotivo, com admirável carinho. Substituía-o em todas as atividades caseiras, lia-lhe os livros prediletos, descrevia-lhe a paisagem, rodeava-o de ternura…


39 Com assentimento do chefe da casa, Ênio passou a dormir na residência singela, atento à posição de Blandina que reclamava assistência cuidadosa. Aquela flor de bondade e meiguice emurchecia lentamente ao sopro da morte.

Com efeito, numa noite fria e nublada, piorou de repente.

O ancião compreendeu que o fim havia chegado e rogou que Taciano viesse rápido abraçar a filha, para que lhe não faltasse o conforto da presença paterna à hora extrema.

Taciano, depois que ficara cego, julgou não sofreria tanto com a perda de Blandina, cuja afeição lhe constituía inapreciável tesouro. E pensava: não seria mais justo alegrar-se por vê-la exonerada do encargo de suportar-lhe as provas rudes? Por que conservá-la presa a um inválido? Como rejubilar-se, na expectativa de senti-la escravizada à pobreza e à miséria?

Contudo, aquele apelo, dentro da noite alta, tivera sobre ele o efeito de uma punhalada mortal.

Acudiu, aflito, cambaleante…


40 Sentou-se no leito humilde e, auxiliado por Ênio, acariciou a agonizante, que não mais lhe ouvia as palavras de amor e chamamento… Apertou-a de encontro ao peito, qual se desejasse prendê-la ao próprio corpo, mas, como se apenas lhe esperasse o calor reconfortante, Blandina repousou, enfim, com a placidez de um anjo que adormece.

Desesperado, o filho de Varro gritou, desconsolado, desferindo amargas lamentações que se perdiam no seio da noite…

No dia seguinte, sob o patrocínio de Pudens, os funerais foram efetuados como a jovem desejara.

O infortunado genitor, apoiando-se agora no filho adotivo, não obstante em desacordo íntimo com os cristãos, acompanhou os despojos da jovem e permaneceu nas dependências da igreja, sem coragem de voltar à antiga casinha.


41 Agarrado à memória da filha, mandou fazer uma lápide de mármore, da qual se destacavam em alto relevo dois corações entrelaçados, com a formosa inscrição: Blandina Vive.

Amparado por Celso, ele mesmo quis ajudar a colocação da lembrança sobre o túmulo singelo e, ao término do serviço, tateou a legenda expressiva, fez o gesto de quem se abraçava ao sepulcro e, em seguida, suplicou, ajoelhado:

— Blandina, filha querida! De onde estiveres, sê de novo a minha luz! Estrela, acende teus raios para que eu possa caminhar! Estou só na Terra! Se outra vida existe, além da campa fria que te guarda, implacável, compadece-te de mim! Não permitas que a treva me envolva! Muitos vi partir para o estranho labirinto da morte!… Nunca, entretanto, senti tamanha sensação de abandono!… Filha abençoada, não me deixes, jamais! Livra-me do mal! Ensina-me a resistir contra os monstros da inconformação e do desânimo!… Mostra-me a bendita claridade da fé! Se erros tenho cometido sob a escura inspiração da vaidade e do orgulho, ajuda-me a encontrar a verdade! Adotaste uma crença para a qual não me preparei… Escolheste um caminho diferente do nosso, todavia, filha inolvidável, não poderias enganar-te!… Se encontraste o Mestre que esperavas, renova-me o coração para que me coloque também ao encontro dele!… Não conheço os deuses, em cuja existência ainda creio, mas tive a felicidade de conhecer-te e em ti confio infinitamente!… Ampara-me! soergue minh’alma abatida! Volta Blandina! Não vês agora que teu pai está cego? Enquanto permanecias no mundo, tive a presunção de guiar-te!… Hoje, porém, sou um mendigo de teu arrimo! Filha bem-amada, vive comigo para sempre!…


42 Calou-se a voz dele na estreita necrópole, abafada por um temporal de lágrimas…

Foi então que Celso o recolheu nos braços amorosos, beijou-o com indizível carinho e falou, confiante:

— Meu pai, o senhor nunca estará sozinho…

Amparando-se nele, Taciano, esmagado de dor, afastou-se da cripta, trêmulo e hesitante.

Não longe, pequena assembleia entoava hinos cristãos, nas preces vespertinas…

O desventurado cego, apesar de haver encontrado ali o espontâneo acolhimento dos aprendizes do Evangelho, reconhecia que a sua existência não podia encerrar-se naquele santuário de princípios diversos dos dele e concluiu que o destino inexorável o convidava a caminhar…


Emmanuel



[1] Mediolanum, hoje Évreux. ( † ) — (Nota do Autor espiritual.)

Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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