O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Instruções psicofônicas — Autores diversos


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Uma despedida

Em nossa reunião da noite de 10 de março de 1955, por permissão de nossos Benfeitores Espirituais, no horário dedicado às palestras dos Instrutores, o amigo desencarnado que conhecemos por José Gomes n ocupou a organização psicofônica, falando-nos de sua penosa experiência no Além.

Nosso visitante, há seguramente dois anos, passou pelos serviços assistenciais de nossa agremiação, desorientado e aflito, voltando até nós, agora calmo e consciente, para relatar-nos sua história, por intermédio da qual nos faz sentir toda a gama de sofrimentos em que se enleou, depois do homicídio em que se comprometeu na Terra.

“Uma Despedida” oferece-nos amplo material para meditação e para estudo.


1 Trazido até aqui por devotados benfeitores, venho agradecer-vos e despedir-me.

Há quase dois anos, fui socorrido nesta casa, fazendo-se luz nas trevas de minhalma…

2 Eu era, então, um assassino que por cinquenta anos padecia no ergástulo do remorso.

3 Crendo preservar a minha felicidade, apunhalei um amigo, instigado pela mulher que eu amava e, apoiando-me na desculpa de legítima defesa, consegui absolvição na justiça terrestre.

4 Contudo, que irrisão! O homem que eu supunha haver aniquilado, mais vivo que nunca prendeu-se-me ao corpo e, em poucos meses, sucumbi devorado por estranha moléstia que escarneceu de todos os recursos da medicina.

5 Ai de mim! Nas raias da morte, apesar do conforto que me era oferecido pela fé, através de um sacerdote, não encontrei para mentalizar senão o quadro do homicídio que perpetrara.

6 E à maneira do homem vitimado por tormentoso pesadelo, sem sair do leito em que se acolhe à prostração, vi-me encarcerado em meus próprios pensamentos, vivendo a tortura e o pavor que alimentava no campo da minha alma…

7 Sempre o terrificante painel a vibrar na memória!…

Um companheiro infeliz, suplicando indefeso: — “Não me mate! Não me mate!…” A presença da mulher querida… Os gênios do crime a gargalharem junto de mim e a calma impassível da noite, com a minha cólera insopitável a dessedentar-se num peito exangue e aberto…

8 Em me cansando de enterrar a lâmina na carne sem resistência, arrojava-me ao piso da câmara iluminada, mas, a onda esmagadora de sangue levantava-se do chão, tingindo paredes, afogando móveis, empapando-me a vestimenta e, quando me sentia semi-sufocado, eis que me erguia de novo para continuar no duelo indefinível.

9 Se tinha fome, mãos invisíveis ofereciam-me sangue coagulado; se tinha sede, davam-me sangue para beber…

10 Era dia? Era noite?

Ignorava.

Somente mais tarde, quando amparado pelas palavras de esclarecimento e de amor dos nossos benfeitores, por vosso intermédio, vim a saber que o inimigo se contentara com o meu cadáver e que eu não vivia senão minha própria obsessão, magnetizado por minhas ideias fixas, jungido ao pó do sepulcro, durante meio século, recapitulando quase que interminavelmente o meu ato impensado.

11 Circunscrito à alcova fatídica, que jazia em minhas reminiscências, passei da extrema cegueira à desmedida aflição.

12 Existiria, realmente, um Deus de paz e bondade?

Bastou essa pergunta para que réstias de luz se fizessem sentir em meu Espírito entenebrecido, como relâmpago em noite de espessa treva…

13 No entanto, para chegar à certeza de Deus, precisava de um caminho.

Esse caminho era ela, a mulher amada.

14 Queria vê-la; ouvi-la, tocá-la…

E tanto clamei por isso que, em certa ocasião, senti como que uma rajada de vento forte, arrebatando-me para o seio da noite..

15 Carregava comigo aquele fatal aposento, contudo, podia agora respirar a brisa refrescante, entre as sombras noturnas que filtravam, de leve, as irradiações da lua nova.

16 Mais ágil, andei apressadamente…

Onde estaria ela, a mulher que estava em mim?

17 Favorecia-me o sopro do vento e, a minutos breves, alcancei pequeno jardim, vendo-a sentada com uma criança ao colo…

18 Ah! Somente aqueles que sentiram na vida uma profunda e irremediável saudade poderão compreender o alarme de meu Espírito naquela hora de reencontro!…

19 Mas, assim que me percebeu, conchegou a criança ao coração e fugiu, espavorida…

Eu devia ser aos seus olhos um fantasma repelente a regressar do túmulo!

20 Persegui-a, porém, até que a vi penetrando um quarto humilde… Observei-a, ajustando-se ao corpo de carne, tal qual a mão em se colando à luva…

21 Entendi, sem palavras, a nova situação.

Enlaçada a um homem que lhe partilhava o leito, reconheci, sem explicações verbais, que o filhinho nascituro era meu velho rival e que o homem desconhecido era-lhe agora o esposo, outro adversário que me cabia vencer.

22 O ódio passou a estourar-me o crânio.

O cheiro acre e fedentinoso de sangue novamente me ensandeceu.

23 Beijei-a, delirando em transportes de amor não correspondido, e consegui instilar-lhe aversão pelo marido e pelo filho recém-nato.

24 Queria matá-la… desejava que ela vivesse novamente para mim… pretendia sugar-lhe os eflúvios do coração…

25 E, durante muitos dias, permaneci naquela casa, desvairado e irresponsável, envenenando a própria medicação que lhe era administrada…

26 Consegui dominá-la até o dia em que foi conduzida a um círculo de orações…

E, nesse círculo, vossos amigos me encontraram… Encontraram-me e trouxeram-me a esta casa…

27 Com os ensinamentos que me dirigiram, a câmara do crime desapareceu de minha imaginação… Todas as ideias estagnadas que me limitavam o pensamento, qual se eu fora o próprio remorso num casulo infernal, desfizeram-se, de pronto, como escamas de lodo que, em se desintegrando, me libertaram o Espírito…

28 Desde então, fui admitido em uma escola…

Transcorridos seis meses, tornei ao lar que eu me propunha destruir, transformado pelas lições dos instrutores que vos orientam o santuário.

29 Novos sentimentos me vibravam no coração.

Compadeci-me daquela que sofria tanto e que tanto se esforçava por reabilitar-se perante a Lei!

30 Contemplei-lhe o filhinho e o esposo, tomado de viva compaixão…

Achava-me renovado…

31 Compreendi então convosco que o coração humano, — concha divina, — pode guardar consigo todos os amores…

32 Observei a extensão de minhas faltas e voltarei à carne em dias breves!

Aquela por quem me perdi ser-me-á devotada mãe…

33 Terei um pai humilde, generoso e trabalhador, abençoando-me o restabelecimento moral, e, em meu irmão, já renascido; encontrarei não mais o antagonista, mas o companheiro de provação com quem restaurarei o destino…

34 Ante o coração que me estimula a esperança, não mais direi: — “Mulher que eu desejo!” e sim “mãezinha querida!…”

35 Nossos sentimentos pairarão em esfera mais alta e de seus lábios aprenderei, de novo, as sublimes palavras: — “Pai Nosso, que estás no Céu…”

36 Fitar-lhe-ei nos olhos o celeste horizonte e, trabalhando, enxergarei feliz a senda libertadora…

37 Ah!… Entendereis comigo semelhante ventura?

Creio que sim.

38 Partirei, desse modo, não para a companhia dos anjos, mas para o convívio dos homens, refazendo meu próprio caminho e regenerando a própria consciência.

39 E, abraçando-vos com afetuosa gratidão, saúdo em Nosso Senhor Jesus-Cristo a fé que nos reúne!…

40 Terra — abençoado mar de lutas…

Carne — navio da salvação!

Lar — templo de luz e trabalho…

Mãe — santuário de amor!…

Meus amigos, até amanhã!

Bendito seja Deus.

José Gomes


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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