O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Os mensageiros — André Luiz


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O Caluniador

(Sumário)

1. Enquanto o administrador se entregava a conversações educativas com os numerosos subordinados, Aniceto chamou-nos a pequena construção isolada e falou:

— Vejamos outro ensinamento.

2 Avançamos na direção de algumas câmaras separadas.

Nosso instrutor abriu uma porta e vimos um louco, que parecia fundamente irritado. Fixou em nós o olhar inexpressivo e gritou estentoricamente. Aniceto, porém, adiantou-se e cumprimentou-o, atencioso:

— Como vai, Paulo?

3 As palavras, ao que senti, emitiram certo fluxo magnético e o enfermo revelou profunda modificação. Aquietou-se de súbito. Sentou-se mais calmo, embora trêmulo e espantadiço.

— Tem sentido melhoras, Paulo? — Perguntou nosso orientador, bondosamente, tocando-o no ombro.

4 Ao contato pessoal de Aniceto, o doente mostrou algum raciocínio e respondeu:

— Vou melhorando, graças…

5 À vista da expressão reticenciosa, o instrutor falou em tom firme, como se desejasse auxiliar-lhe a vontade enfraquecida:

— Termine!

O doente fez enorme esforço e concluiu:

— G…r…a…ç…a…s  a  D…e…u…s.

6 Anotando-lhe o sofrimento e a indecisão, lembrei dos enfermos das Câmaras, aos quais prestava Narcisa ampla colaboração afetuosa. Percebendo-me as íntimas considerações, disse o mentor esclarecido:

7 — Veem a diferença entre os que dormem, os que estão loucos e os que sofrem? Em “Nosso Lar”, não temos dos primeiros, e os que se encontram desequilibrados, nos serviços da Regeneração, sentem, na maioria, angústias cruéis. 8 É necessário reconheçamos que os que gemem e sofrem, em qualquer parte, estão melhorando. Toda lágrima sincera é bendito sintoma de renovação. 9 Os escarnecedores, os ironistas e os perturbados que não registam a dor são mais dignos de piedade, por permanecerem embotados em estranha rigidez de entendimento.

10 E, designando o enfermo sob nossos olhos, afirmou:

— Paulo é um doente a caminho de melhora positiva. Ainda não possui a consciência exata da situação, mas já chora, já padece com as recordações do passado triste.

11 Recebi o esclarecimento com atenção. Lembrei-me que, de fato, os doentes conduzidos pelos Samaritanos a “Nosso Lar”, em serviço diário, eram grandes sofredores. Os que não acusavam padecimentos atrozes, revelavam estranho pavor das sombras. A única entidade que ali observara, com absoluta inconsciência da própria miséria, fora a de pobre vampiro que não encontrara guarida nas Câmaras de Retificação. ( † )


2. Nosso instrutor, sem qualquer preocupação de transformar o doente em cobaia, recomendou, afetuoso:

— Concentrem no Paulo a capacidade de visão!

2 Estimulado pela experiência anterior, fixei nele todo o meu potencial de observação.

Aos poucos, caracterizou-se a meus olhos a sua tela mental, parecendo formada em compacta sombra noturna. Com surpresa, divisei formas diversas que se movimentavam. 3 Vários vultos de mulher ali surgiam, despertando-me enorme admiração. Entre eles, reparei o de Ismália como que doente, enfraquecida, ansiosa. 4 Alguns homens passavam, igualmente, mostrando desesperação, e notei, nessas imagens, o próprio Alfredo a evidenciar cansaço e extrema velhice prematura. 5 Vozes misteriosas se faziam ouvir. Sobre Paulo choviam maldições e blasfêmias. As mulheres pareciam acusá-lo, clamorosamente; os homens davam ideia de perseguidores ferozes, ocultos no mundo interior daquele enfermo estranho. 6 Observando, porém, que os vultos de Ismália e Alfredo se movimentavam naquele painel escuro, não pude sofrear a curiosidade e interrompi o minucioso exame, voltando a conversar com o nosso orientador, perguntando:

— Como explicar o fenômeno? Estou assombrado!

7 Antes, porém, que pudesse expressar maiormente o espanto que me dominara, Aniceto ajuntou:

— Já sei. Admira-se da presença de Ismália e do seu marido nas reminiscências do enfermo.

8 E, ante a minha perplexidade, continuou:

— Lembram-se da história de Alfredo? Temos diante de nós o falso amigo que lhe arruinou o lar. 9 Paulo, contudo, não somente cometeu a ingratidão, como envenenou o espírito doutras senhoras, traiu outros amigos e destruiu a alegria e a paz doutros santuários domésticos. 10 Observando Ismália aflita e Alfredo desesperado, nas recordações dele, vemos as imagens criadas pelo caluniador, para seus próprios olhos. 11 Nossos amigos deste Posto evolutiram, transpuseram a fronteira da mágoa, escaparam aos monstros do ódio, vestem-se hoje de luz; no entanto, Paulo os vê como imagina, para escarmento de suas culpas. 12 O criminoso nunca consegue fugir da verdadeira justiça universal, porque carrega o crime cometido, em qualquer parte. 13 Tanto nos Círculos carnais, como aqui, a paisagem real do Espírito é a do campo interior. Viveremos, de fato, com as criações mais íntimas de nossa alma.

14 Reparando-me a dificuldade para compreender de pronto, Aniceto prosseguiu, depois de pequeno intervalo:

— Para melhor elucidação, recordemos a crucificação do Mestre Divino. 15 Sabemos que Jesus penetrou na glória sublime logo após a suprema dor do Calvário; entretanto, estamos ainda a vê-Lo frequentemente pendurado na cruz, martirizado pelos nossos erros, flagelado pelos nossos açoites, porque a visão interior a isso nos compele. 16 A condenação do Mestre foi um crime coletivo e esse crime estará conosco até ao dia em que nos vestirmos na divina luz da redenção.

17 O esclarecimento não poderia ser mais lúcido. Sentia-me diante de nobre revelação.

— O dever possui as bênçãos da confiança, mas a dívida tem os fantasmas da cobrança, — tornou o generoso mentor, com grave acento.


3. Readquirindo a serenidade, interroguei:

— Mas Paulo veio ter casualmente a este Posto?

— Não, — respondeu Aniceto, atencioso; — foi trazido pelo próprio Alfredo, que se sentiu necessitado de disciplinar o coração. 2 Nosso amigo, que hoje dirige esta casa de amor, desprendeu-se do mundo, sob intensa vibração de ódio e desesperação. Sofreu muitíssimo nos primeiros tempos, embora nunca fosse abandonado pela dedicação da abnegada companheira. 3 Alfredo, todavia, não pôde ver Ismália enquanto não se desvencilhou das baixas manifestações do rancor. Socorrido em “Campo da Paz”, compreendeu as próprias necessidades. 4 Tão logo adquiriu algum mérito, intercedeu pelo amigo infiel, buscou-o em recanto abismal, e tão nobremente se dedicou ao aperfeiçoamento de si mesmo, que conquistou a posição de administrador de um Posto de Socorro. 5 Trouxe o tutelado em sua companhia e trata-o como irmão, atualmente. 6 Não julguem que o marido de Ismália conseguisse essa vitória espiritual tão somente pelo fato de desejá-la. Ele desejou-a, procurou-a, alimentou-a, e, agora, permanece na realização. 7 Há muitos anos conversa com Paulo, diariamente. Nos primeiros tempos, aproximava-se do enfermo, como necessitado de reconciliação; depois, como pessoa caridosa; mais tarde adquiriu entendimento, comparando situações; em seguida, sentiu piedade; logo após, experimentou simpatia e, presentemente, conquistou a verdadeira fraternidade, o amor sublime de irmão pelo ex-inimigo.

8 Fazendo pequena pausa, voltou a dizer, espirituosamente:

— Como veem, o ensinamento de Jesus, quanto ao “batei e abrir-se-vos-á”, ( † ) é muito extenso. 9 No Plano da carne, insistimos à porta das coisas exteriores, procurando facilidades e vantagens; mas, aqui, temos de bater à porta de nós mesmos, para encontrar a virtude e a verdadeira iluminação.

10 Vicente, que se conservara calado, até então, indagou:

— Paulo, todavia, permanecerá aqui, indefinidamente?

11 Nosso instrutor fez um gesto significativo e concluiu:

— Voltará breve à Terra. Ismália tem feito por êle generosas intercessões e não deseja que ele, ao retomar a razão plena, se sinta humilhado, com o benefício das próprias vítimas. 12 Uma das irmãs, por ele caluniadas no mundo, já voltou ao Círculo carnal, e a abnegada esposa de Alfredo pediu-lhe que recebesse Paulo como filho, tão logo seja oportuno.


André Luiz


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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