O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Reportagens de Além-túmulo — Humberto de Campos


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Mania de enfermidade

1 — Vamos Luísa! — Exclamava Inácio Penaranda, dirigindo-se à esposa afetuosamente, — creio estimarás o tema evangélico desta noite. Prometem-nos valiosas conclusões, relativamente à mediunidade e seu exercício. Ao que suponho, os esclarecimentos apresentarão singular interesse para nós ambos.

2 Luísa apoiou o rosto na mão direita, num gesto muito seu, e disse com enfado:

— Ora, Inácio, achas que posso cometer a imprudência de enfrentar a noite chuvosa? E a minha nevralgia? A gripe do Carlos e o reumatismo de mamãe? Não teria ouvidos para as lições a que te referes. Francamente, não posso compreender tuas boas disposições invariáveis.

3 Inácio aprimorava o nó da gravata e respondia: — Compreendo os teus cuidados, mas devo lembrar que há três anos te esquivas à minha companhia. Naturalmente, devo ser o primeiro a encarecer tuas virtudes de filha e mãe; creio, porém, que exageras o sentido das enfermidades. Em vão procuro interessar-te nos problemas da fé, inutilmente busco inclinar-te a mente para os problemas mais nobres da vida. Não sabes falar senão de doenças, insônias, ventosas, injeções e comprimidos. Vives quase esmagada por expectativas angustiosas. A chuva aborrece-te, o frio te atormenta, o vento leve te atemoriza. Tudo isso é de lamentar, porque nossa casa não se formou no pântano da ignorância, mas nos alicerces de conhecimentos sólidos. Nossa fé consagra a iluminação íntima como patrimônio mais precioso do mundo. Por que, então, viver assim, descrente de Deus e de ti mesma?

4 A senhora Penaranda esboçou um gesto de sensibilidade ofendida e redarguiu chorando:

— Sempre as mesmas exortações ásperas! Quando me poderás compreender? Sabe Deus minhas lutas, meus esforços para reaver a saúde perdida!…

— Certamente, Deus não desconhece nossos trabalhos, mas também não poderia aplaudir nossas inquietações injustificadas.

5 Dona Luísa cravou os olhos no companheiro, extremamente excitada, e bradou:

— Céus! Que infelicidade a minha! Que mágoa irremediável! Estou só, ninguém me compreende. Valha-me Nosso Senhor Jesus-Cristo!…

Após dirigir-lhe um olhar de piedade, o marido despedia-se:

— Não precisas aumentar a lamentação. Até logo.

6 A companheira torcia as mãos, desconsolada; todavia, escoados alguns minutos, correu à porta de saída a gritar:

— Inácio! Inácio!

Ele voltou a indagar os motivos do chamamento.

— A capa! — Explicava a dona da casa, ansiosamente. — Esqueceste a capa… Lembra-te de que me sinto aniquilada. Não queiras também arruinar a saúde.

Inácio, resignado, vestiu o capote impermeável e saiu calmamente.

7 Aquela mania da senhora Penaranda, contudo, era muito velha. Dona Luísa não enxergava senão miasmas e pestilências por todos os lados. Embora as dores que cultivava, grande parte do dia era por ela empregado em esfregar metodicamente o assoalho, receosa do acúmulo de pó. Nunca permitia que o filho se levantasse da cama antes que o Sol inundasse as dependências da casa; trazia a velha progenitora quase totalmente enfaixada num quarto escuro, rodeada de unguentos e caixas de injeções, e para si mesma descobria diariamente os mais extravagantes sintomas. Referia-se a dores nos braços, nas pernas, no rosto. 8 Dizia-se vítima de todos os sofrimentos físicos. A imaginação enfermiça engendrava moléstias nas mais ínfimas sensações e, na residência dos Penaranda, nos fins de mês, as contas da farmácia superavam todas as demais despesas reunidas. Debalde o marido lhe oferecera as luzes do Espiritismo cristão, ansioso por modificar-lhe as disposições mentais. Dona Luísa furtava-se às observações mais sérias e não sabia viver senão entre sustos, pavores e preocupações. Raro o dia que ao voltar dos serviços habituais, não a encontrava o companheiro afogada em grosso costume de lã, hermeticamente encafuada na alcova, a lamentar o vento, a umidade, a nuvem…

9 De quando em quando, valia-se Inácio de oportunidades da conversação comum, tentando incutir ideias novas no espírito da companheira; de modo a criar-lhe ambiente diverso. A teimosa senhora não se resignava a omitir comentários a doenças de toda sorte.

10 Quando a situação doméstica se tornou mais grave, o chefe da família não se conteve e intimou a esposa a ocupar-se de assuntos mais elevados, compelindo-a a examinar nobres problemas espirituais e a ouvir preleções evangélicas em sua companhia.

11 Dona Luísa atendeu, porém constrangidamente, a queixar-se amargurada. No curso das reuniões a que compareceu forçada pelo marido, causava compaixão a quantos lhe ouviam a palavra lamentosa. A infeliz criatura não andava; arrastava-se. Suas considerações sobre a vida eram acompanhadas de suspiros comovedores, como se a sua palestra não devesse passar de gemidos longos. Não escutava as dissertações construtivas nem participava das orações no ambiente geral. Apenas prestava atenção às consolações de Salatiél, o amorável benfeitor invisível que comparecia a quase todas as reuniões. 12 À maneira de criança viciada a receber carinhos, cheia de noção exclusivista, Dona Luísa agarrava-se às expressões de conforto, completamente alheia aos apelos de ordem espiritual. Parecia, contudo, tão esmagada de padecimentos físicos, que a senhora Marcondes, devotada médium do Grupo, se ofereceu voluntariamente a levar-lhe socorros espirituais na própria residência. A família Penaranda aceitou, sumamente reconhecida. Enquanto Inácio examinava a possibilidade da renovação mental da esposa, antegozava Dona Luísa o momento em que pudesse conversar com o Espírito Salatiél, quase a sós, para comentar as enfermidades numerosas que lhe invadiam o corpo e lhe assaltavam o lar.

13 Começaram os trabalhos de assistência, em círculo muito íntimo.

O dono da casa não cabia em si de esperança e contentamento.

Na primeira noite de orações, Salatiél discorreu sobre a Providência do Eterno Pai e as divinas possibilidades da criatura. O verbo amoroso e sábio da venerável entidade extravasava luz de esclarecimento e mel de sabedoria. Mas, com enorme surpresa dos presentes, finda a preleção, Dona Luísa adiantou-se, interpelando o instrutor invisível:

— Meu caro protetor, antes de vos retirardes gostaria de vos ouvir sobre as dores que venho sentindo no braço esquerdo.

14 Depois de prolongado silêncio, o amigo espiritual, como o homem educado a atender uma criança, respondeu qualquer coisa que a induzia à confiança no Poder Divino.

A consulente não se deu por satisfeita e pediu explicações para a comichão que sentia nos pés; também sobre o abatimento do filhinho e um exame dos órgãos de sua velha mãe. Sentindo-se crivado de interrogações inoportunas, o benfeitor invisível prometeu alongar-se convenientemente no assunto, na reunião da semana seguinte.

15 Com efeito, na sessão imediata, compareceu Salatiél e endereçou significativa mensagem à senhora Penaranda.

— Minha irmã, — dizia ele solicitamente, — não construas cárcere mental para as tuas possibilidades criadoras na vida. É razoável que o doente procure remédio, como o sedento se encaminha à fonte amiga que lhe desaltera a sede. Não envenenes, porém, os teus dias no mundo com a ideia de enfermidades. Por que esperar a saúde completa, num Plano de material imperfeito como a Terra? Se o planeta é, reconhecidamente, uma escola, é justo não possa constituir morada exclusiva de educadores. 16 Se a reencarnação é desgaste de arestas, coma aguardar expressão de pureza absoluta nos elementos em atrito? O corpo humano é campo de forças vivas. Milhões de indivíduos celulares aí se agitam, à moda dos homens nas colônias e cidades tumultuosas. Há contínuos serviços renovadores na assimilação e desassimilação. Se isto é inevitável, como aguardar perfeita harmonia orgânica na máquina celular desmontável e perecível? Lembra que esse laboratório corporal, transformável e provisório, é o templo onde poderás adquirir a saúde eterna do Espírito. 17 Andaria acertado o crente que se deixasse deter voluntariamente no lodo que recobre as paredes da sua casa de oração, indiferente à intimidade sublime e profunda do santuário? É justo que as figurações externas requisitem a nossa atenção, mas não podemos esquecer o essencial, o imperecível e o melhor. Pondera minhas despretensiosas palavras e liberta a mente encarcerada nas sombras transitórias, recordando o ensinamento de Jesus quando asseverou que nosso tesouro estará sempre onde colocarmos o coração. ( † )

18 Dona Luísa, porém, continuou impermeável às admoestações nobres e elevadas. Não valeram conselhos de Salatiél, com amorosas interpretações do marido e dos irmãos na fé.

Os anos agravaram-lhe preocupações e manias, até que a morte do corpo se encarregou de atirá-la a novas experiências.

19 Qual não lhe foi, porem, a surpresa dolorosa ao ver-se sozinha, abandonada, sem ninguém?! Guardava a nítida convicção de haver transposto o limiar do sepulcro, mas continuava prostrada, experimentando vertigens, dores, comichões. Tomada de pavor, observava os pés e mãos singularmente inchados, a epiderme manchada de notas gangrenosas dos derradeiros dias na Terra. Orava, e contudo as suas orações pareciam sem eco espiritual.

20 Quanto tempo durou esse martírio? Luísa Penaranda não poderia responder.

Chegou, no entanto, o dia em que pôde lobrigar o vulto de Salatiél, depois de muitas lágrimas.

— Oh! venerável amigo! — Exclamou a desencarnada, agarrando-lhe as mãos, — por que semelhantes sofrimentos? Não é certo que deixei a experiência terrestre? Não ouvi muitas vezes que a morte é libertação?

21 Enquanto o generoso emissário contemplava-a, compadecido, a infeliz continuava:

— Onde a justiça de Deus que eu esperava? Nunca fui má para os outros…

À essa altura, o benfeitor espiritual tomou a palavra e esclareceu:

— Sim, Luísa, nunca foste má para os outros, mas foste cruel contigo mesma. Não sabes que toda libertação ou escravização podem começar na Terra ou nos Círculos invisíveis? Sepulcro é mudança de casa, nunca de situação espiritual. A morte do corpo não elimina o campo que plantamos. Aliás, é a sua mão que nos oferece a colheita. Preferiste a ideia de enfermidade, cultivaste-a, alentaste-a. É natural que teu campo aqui seja o da enfermidade. Não existe outro para quem, como tu, não quis pensar outra cousa.

22 E, ante o olhar assombrado da infeliz, Salatiél rematava:

— Existe o Reino de Deus que aguarda a glorificação de todas as criaturas, e existem os reinos do “eu”, onde nos internamos pelas criações do próprio capricho. Abandonemos os reinos inferiores das nossas ilusões, minha boa amiga! Procuremos o Reino de Deus, infinito e eterno!…

A Srª Penaranda sentiu arfar-lhe o peito, alucinada de esperanças novas.

— Leva-me contigo, generoso Salatiél! Livra-me destes dolorosos padecimentos!… Ensina-me o caminho da Liberdade!…

23 O mensageiro lançou-lhe um olhar fraterno e, fazendo menção de retirar-se, acentuou:

— Posso, como outrora, convidar-te, mas não posso arrastar-te. O problema pertence ao teu foro individual. O trabalho é do teu campo. Arranca-lhe a erva daninha e semeia-o de novo. Vem conosco, Luísa. Ajuda-te. Se te sentes verdadeiramente cansada da escravidão em que tens vivido, recorda que para a libertação do Espírito todo minuto é tempo de começar.


Humberto de Campos

(Irmão X)

Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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