O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

Índice | Página inicial | Continuar

Renúncia — Emmanuel — 2ª Parte


5


Provas redentoras

1 A vida familiar no palacete da Cité  †  tornara-se bem amarga. A viúva Davenport perambulava pelos aposentos, dementada e combalida. O velho Jaques, dominado pelos dissabores acerbos, vivia entre o leito da decrepitude e as lágrimas sem consolação. Beatriz, na sua mocidade cheia de sonhos, ainda não saíra da penosa estupefação, dando mostras de singular abatimento.

Foi aí que Alcíone fez valer as virtudes da sua fé, por maneira a satisfazer plenamente os novos deveres. Nunca abandonava Susana, de quem se fizera enfermeira dedicada e afetuosa. Robbie continuava trabalhando em São Jaques, vindo somente três vezes na semana visitar a irmã adotiva, sempre mergulhado em profunda melancolia.


2 Certa ocasião em que o velho professor entabulou com o rapaz uma palestra mais longa, Alcíone foi chamada pelo generoso velhinho, que a interpelou carinhosamente:

— Não posso consentir que o nosso Robbie continue ausente desta casa, por motivos de serviço. Considero mais acertado que deixe a igreja de São Jaques do Passo Alto,  †  vindo morar conosco. Não podemos esquecer que ele é teu irmão, isto é, filho adotivo da nossa querida morta.

— Sim — respondeu a jovem, solícita — nada tenho a opor, mas olhe que seria uma falta grave o privar meu irmão dos benefícios do trabalho.

— Mas Robbie, Alcíone, é muito doente para desdobrar-se em tantas ocupações.

— Mas o senhor não está de acordo comigo, relativamente às vantagens de uma vida laboriosa? Não quero parecer cruel, antes quero reconhecer a magnanimidade do seu coração, com semelhante lembrança; mas o amor ao trabalho é uma das mais nobres heranças que mamãe nos deixou. Basta lembrar que, embora paralítica, ela costurou por muitos anos para nos criar e manter. Além do mais, é sempre útil ao enfermo entreter-se com alguma coisa. A inatividade costuma induzir-nos a falsas apreciações dos desígnios de Deus, a impaciências, a desesperações e rebeldias…


3 Percebendo que o amoroso ancião anotava-lhe mentalmente as palavras com sincera atenção, acrescentava, dirigindo-se ao rapaz:

— Não é verdade que sempre ganhaste muito com a dedicação ao trabalho, Robbie?

— Sim, isso é incontestável.

Mas, deixando perceber que desejava umas tantas alterações de regime, acrescentava:

— Entretanto, se possível, gostaria de transferir-me de São Jaques para outra parte. As recordações de São Marcelo me acabrunham e, depois, aquelas crianças irônicas muito me atormentam com os dichotes e indiretas.

— Ora, Robbie — disse Alcíone com bondosa austeridade —, ainda te preocupas com as tolices de meninos ignorantes?

— Estão sempre a tecer comentários dos meus aleijões…

— E que tem isso? Quando cumprimos nosso dever perante Deus e a consciência, a grosseria ou a ingratidão dos outros são relegadas ao baixo plano a que pertencem.


4 O bondoso ancião acompanhava a neta admirado de ver como conseguia aliar tão facilmente a energia à meiguice.

— Se invocas as lembranças de São Marcelo — prosseguiu a moça ternamente —, dando-me a entender tua saudade de mamãe, recorda que ela cumpriu o seu dever até ao fim, nunca nos pediu uma casa mais confortável, nunca reclamou contra as águas da chuva que invadiam nosso quarto, conservou-se de agulha na mão enquanto Deus lhe permitiu a graça de trabalhar, enriquecendo o nosso esforço… Os aleijões do corpo, Robbie, são melhores que os da alma…

O rapaz experimentou certo abalo ao ouvir as últimas palavras. Reconhecendo-lhe a estranheza, Jaques procurou intervir carinhosamente:

— Alcíone tem razão — exclamou atencioso —, o trabalho é uma bênção de Deus. Não te deves agastar, meu caro Robbie, com os obstáculos encontrados. Todos nós temos uma dificuldade a vencer na vida. O próprio Jesus não caminhou sobre flores.

E dirigindo à neta um olhar significativo, murmurava:

— Apesar disso, minha filha, espero não te aborreças se eu pedir a Henrique a colocação do rapaz mais próximo de nós. Poderá, por exemplo, empregar-se nos serviços de São Landry.

O filho adotivo de Madalena agradecia com a expressão satisfeita, enquanto a jovem concordava:

— Não tenho objeção a fazer, desde que Robbie continue a descobrir, cada dia, a grandeza do espírito de serviço.


5 Daí a alguns dias, Henrique de Saint-Pierre, o noivo de Beatriz, conseguia a mudança desejada, com grande júbilo para o rapaz, que se transferiu definitivamente para a Cité,  †  podendo assim ficar em contato diário com a irmã adotiva.

A dedicação de Alcíone à viúva Davenport era um exemplo vivo de amor, a calar fundo no coração dos familiares. A própria Beatriz parecia mais concentrada nos problemas graves da vida. Aquele ar de despreocupação, que lhe caracterizava a juventude, desaparecera. Tornara-se mais acessível aos criados, ouvia com interesse as advertências do avô, que não se sentia muito encorajado a prosseguir enfrentando as borrascas fortes do mundo. O noivo notara, satisfeitíssimo, aquela transformação. A jovem Davenport aliava, agora, à beleza juvenil, larga dose de reflexão ao cogitar dos problemas do destino e do sofrimento. A dor abrira-lhe novas possibilidades de inspiração religiosa. A perturbação mental da genitora impedia o culto doméstico, tais as condições precárias do seu organismo; mas, sempre que lhe era possível, lia e meditava longa e atentamente o Evangelho de Jesus. Sua conversação tornara-se mais rica e substanciosa. Alcíone tinha com isso grande consolo.


6 Havia um mês que morrera Madalena Vilamil.

O estado mental da viúva apenas se agravara. Noites inteiras passava ela em gritos alarmantes, em sinistras visões. Alquebrado pelos anos, cheio de achaques e mais pelos desgostos profundos que lhe golpearam o coração, o tio de Cirilo esperava a morte resignado. Beatriz atendia aos múltiplos encargos domésticos e apenas Alcíone velava pela doente, com as suas infinitas reservas de amor cristão.

Às vezes, alta noite, a demente sacudia-a com gestos de pavor:

— Vês, Alcíone? Satã vem chegando com as suas sentinelas perversas! Ah! que desejam de mim? Já confessei tudo… Esta casa não é lugar de demônios! Voltem para os infernos!… n

E rojava-se de joelhos, exclamando:

— Deus me livrará das fúrias do Maligno. Porque confessei a verdade, Satanás persegue minh’alma! Não a levarás, bandido!

— Não se exalte, senhora Susana — observava a moça com doçura. — Vamos orar pedindo a Deus calma e resignação. Tranquilize-se! O poder das trevas se anula; ante a luz divina. Vamos fugir para os braços de Deus, como as crianças que buscam o colo materno quando uma fera se aproxima!…


7 Suplicava a proteção de Deus, em voz alta, no que era seguida, palavra por palavra, pela infeliz demente.

Terminada a rogativa, Susana mostrava-se mais calma, agradecia com sorrisos infantis e ponderava:

— Só o teu coração compreende as minhas necessidades! Todos me dizem que estou alucinada, que não vejo senão perturbações do meu próprio espírito! Meu pai me manda reagir sem que eu possa faze-lo; minha filha crê que eu esteja sendo vítima de ilusões! Entretanto, Alcíone, o demônio vem sempre ao meu quarto tripudiar do meu remorso intraduzível! Quando oras comigo, ele se prontifica a sair, mas faz um sinal dando a entender que voltará no primeiro ensejo!…

— Acalme-se, senhora — procure pensar na magnanimidade da Providência Divina. Quando se aproximarem os maus Espíritos, ofereça-lhes um pensamento de sincera confiança no Altíssimo. Peçamos-lhes perdão pelo mal que acaso lhes tenhamos feito em outras eras, humilhemo-nos recordando Jesus, que era imaculado e aceitou a cruz imposta pelos algozes…

A enferma escutava-lhe as exortações carinhosas, de olhar desvairado e respondia:

— Teus conselhos são justos… Sabes que meu estado não é apenas uma alucinação…

— Sim, a senhora não mente.

Ao ouvi-la, Susana Davenport, em pleno desequilíbrio das faculdades mentais, exibia olhares mais estranhos e replicava, com os seus remorsos pungentes:

— Já menti quando sacrifiquei tua mãe, mas agora desejo só a verdade… Porque deixei a falsidade, Satanás me atormenta…

— Tudo isso, porém, passará depressa! — esclarecia a jovem pacientemente.

— Sim, passará… passará… — concluía a enferma atenuando a exaltação.

Em seguida, a filha de Madalena vigiava, em prece, até que a mãe de Beatriz conseguisse adormecer.


8 O ambiente doméstico continuava carregadíssimo.

Numa noite de grandes perturbações, Susana dirigiu-se à carinhosa enfermeira, em pranto convulsivo:

— Não me deixes ir para o cárcere! Já estou sendo castigada rudemente, minha santa menina! Não será melhor que a morte me colha aqui mesmo, como lição para todo o mundo? Muita gente na Cité há de evitar o pecado, quando souber que estou morrendo atormentada, no seio das coisas que pertenciam a tua mãe!…

Não pense nisso! — dizia a interlocutora generosa, tranquilizando-a. — Ninguém a levará daqui. Esta casa é sua e pessoa alguma poderá atentar contra os seus direitos.

— Hoje — voltava a exclamar a louca de olhos esgazeados — vi o infame Padeiro n aproximar-se de meu pai e soprar-lhe alguma coisa aos ouvidos. Daí a momentos, ele e Beatriz declaravam-se resolvidos a me afastar de casa.

— A senhora ficará comigo — murmurou a jovem Vilamil consolando-a —, não precisa inquietar-se porque, antes de tudo, Deus nunca nos abandonará.


9 Com efeito, no dia imediato, ao almoço, dando a impressão de que houvera pensado muitíssimo, antes de apresentar a proposta, Jaques falou, muito trêmulo:

— Minha querida Alcíone, Beatriz e eu estivemos pensando na dilação dos teus sacrifícios e no melhor meio de atender à situação da nossa doente. Como talvez não ignores, temos estabelecimentos em Paris onde a enferma pode ser bem tratada, sem exigir tanto da tua proverbial dedicação.

— Pensam, assim, em afastá-la do convívio doméstico? — perguntou a filha de Madalena surpreendida.

— Efetivamente; as prolongadas vigílias te consomem a saúde. Por minha vez, não te posso ajudar, dado o meu grande esgotamento físico.

— Não, não — retrucou Alcíone firmemente, não concordo. D. Susana não deve, não pode sair daqui. Estou habituada a vigílias e, além disso, a pobrezinha haveria de sofrer muito.

— Mas estaria a salvo de qualquer necessidade no estabelecimento onde tencionamos interná-la.

— Mas isso não lhe garantiria a tranquilidade nem melhoras quaisquer, pois o de que ela mais necessita é de carinho, no transe doloroso por que passa. Estou certa de que não lhe faltariam enfermeiras dedicadas, mas, ainda assim, sempre se consideraria abandonada por nós, no meio de doentes de toda espécie, quando pode perfeitamente tratar-se ao nosso lado, sem que lhe falte o conforto da ternura familiar.


10 Beatriz, que prestava grande atenção aos argumentos da irmã, objetou:

— Tua atitude é nobilíssima, porém nós não podemos pôr de lado a tua saúde. Além disso, as observações de minha mãe, no estado de loucura em que se encontra, são muito impressionantes para quantos nos visitam.

— Pois eu me comprometo a tê-la sob a minha guarda exclusiva. Não se preocupem comigo. Sinto-me forte. Os cuidados com a doente vêm constituindo para mim um grande consolo. A ausência de deveres imediatos nos inclina, por vezes, a reflexões indevidas. Eis por que a companhia de D. Susana tem sido de imensa utilidade para mim. Desde a partida de mamãe, sinto certo vazio na alma… Ao tocar o cravo para a enferma, recordo-me que seu espírito deve estar satisfeito. Será possível que desejem suprimir semelhante satisfação ao meu trabalho diário?

Beatriz lembrou a realização das suas aspirações de moça, sua infância confortada e a juventude feliz; comparou-a com a exemplificação de Alcíone e sentiu os olhos rasos d’água. Nem ela nem o avô se atreveram a falar mais na remoção da enferma.


11 Nesse ínterim, quando se levantaram da mesa, o velho Jaques valeu-se da oportunidade de estarem a sós os três e chamou a atenção da filha de Madalena para certo problema que o preocupava:

— Alcíone — disse afavelmente —, aproveitando este momento de calma, devo dizer-te que mandei buscar, por pessoa de confiança, tua certidão de batismo, em Versalhes; mas, quero crer que fosses batizada na Espanha, por iniciativa de Antero de Oviedo, porquanto em Versalhes nada se encontrou.

— Ah! sim… — murmurou a moça hesitante — posso saber o motivo da providência?

— É a necessidade de regularizarmos a questão da herança paterna: Beatriz e eu precisamos atender a essa parte.

A jovem Vilamil fez um gesto de grande admiração e exclamou:

— Por favor! Não façam isso!… Renuncio voluntariamente em favor de Beatriz. Sua felicidade, seus bens, são os meus.

— É impossível, minha filha — respondeu o avô atenciosamente —; é justo pensarmos no teu futuro. O destino dá muitas voltas e não seria razoável descuidar da tua situação, quando te assiste um direito sagrado!…

— Agradeço tanta dedicação — acentuou a moça com firmeza e ternura —, mas a minha renúncia à herança material de meu pai é decisão que não posso modificar.


12 — Por quê? — interrogou Beatriz ansiosa de repartir com a irmã o copioso quinhão de sua fortuna.

— Já que me perguntam, devo esclarecer. Minha irmã se casará muito breve e não temos o direito de degradar D. Susana no conceito do genro; que, afinal de contas, será também seu filho… Henrique de Saint-Pierre sempre enxergou na futura sogra uma desvelada amiga. Neste amargo período de enfermidade, tem-na tratado com especial carinho. Seria justo desfazer uma atitude tão nobre, tão só por uma razão de possibilidades financeiras, que passam com o tempo? Creio que não. Beatriz, por certo, receberá, das mãos do Altíssimo alguns filhinhos que lhe enriqueçam o coração feminino. Que seria das pobres crianças, quando se recordassem da avó, entre observações descaridosas e pouco dignas? Naturalmente que Saint-Pierre é incapaz de desfazer o noivado pela revelação do pretérito, mas nunca poderia subtrair do lar futuro o mau pensamento, acerca da genitora de sua companheira. Com o tempo, semelhante recordação poderia tornar-se para a querida Beatriz um fardo bastante pesado… Nem todo o dinheiro do mundo bastaria para lhe restituir a tranquilidade. Isso posto, que motivo nos poderia induzir a tornar D. Susana mais desventurada do que é? Descermos a certas explicações num processo de herança, seria enlamear sua memória para sempre. Seria um ato muito indigno de nós. Creio que meus pais, na vida espiritual em que se acham, aprovam plenamente esta conduta.


13 O bondoso ancião e a neta estavam profundamente surpreendidos. Nunca poderiam pensar que o desprendimento da filha de Madalena atingisse tamanha renúncia. Beatriz permanecia emocionada, sem saber manifestar a gratidão que lhe vibrava na alma. Foi o amoroso velhinho quem rompeu o silêncio, considerando:

— Gostaríamos de restabelecer a verdade, apesar de bastante dolorosa. Estou certo de que Henrique se conformaria de bom grado, e que Beatriz não sofreria qualquer dissabor de futuro, satisfeita e feliz por se edificar no teu exemplo. Quem sabe poderias ponderar o assunto com mais vagar e modificar tuas ideias neste particular?

— Não, não creiam, minha resolução é irrevogável.

— Essa resolução, Alcíone — prosseguiu o velho educador —, não poderia parecer menosprezo a um esforço de teu pai? Se Cirilo pudesse ver-te e falar-te, certamente que te arguiria por isso. A interpelada compreendeu que tal argumento era lançado, de maneira mais peremptória, ao seu coração afetivo, no intuito de lhe modificar as disposições íntimas, e retrucou com argumento ainda mais forte:

— A consciência me diz que o nosso amado ausente me abençoa as intenções. Além de tudo, meu genitor deixou-me uma herança muito sublime, para que eu viesse a preocupar-me com dinheiro. Deu-me um avô generoso e uma irmã devotada… E acaso deixei de receber esse legado santo?

Jaques experimentou alguma coisa no coração cansado, como nunca sucedera em todo o curso de sua longa existência. Reconhecido e feliz, exclamou:

— Deus abençoe todos os teus caminhos!…

— Suas bênçãos, meu avô, são para mim uma riqueza eterna…

Beatriz, sensibilizada ao extremo, beijou-a e retirou-se, enxugando uma lágrima.


14 E, dada a desistência completa de Alcíone, a situação no palacete dos Davenport continuou sem modificações apreciáveis.

A enferma, atendida em suas mínimas necessidades pela enfermeira afetuosa, continuava gozando a consideração de suas prestigiosas relações parisienses. Não raro, nobres damas da Corte visitavam-na, testemunhando-lhe carinhosa atenção. Retiravam-se, muitas vezes, fortemente impressionadas pelo que ouviam da pobre demente.

— Acreditas, Marcelina — dizia a enferma a uma colega da juventude —, que o demo não nos persiga diariamente? Vejo-o em luta constante, trabalhando por aniquilar minh’alma… Será que tu também tens algum crime a confessar? Se cometeste alguma falta grave, liberta-te do remorso quanto antes! Satanás nos está espreitando!…

E, rematando as considerações com gargalhadas sibilantes, gritava:

— Ah! Ah! Ah!… Vamos tirar as máscaras, vamos tirar as máscaras!…

As visitas, quase sempre se retiravam impressionadas e admiradas com a paciência da enfermeira.


15 Um ano fazia que Cirilo e Madalena haviam falecido, quando o velho Jaques apresentou sintomas alarmantes. O velho médico da família recomendou o máximo cuidado, porque o enfermo tinha a existência por um fio, podendo morrer de um momento para outro. Enquanto Beatriz se desfazia em lágrimas, Alcíone duplicava a coragem, de modo a atender os doentes, como se fazia necessário. Um portador foi enviado ao Norte, a fim de solicitar a presença de Carolina e dos seus.

Quando a senhora de Nemours chegou com os dois filhos, o genitor estava a despedir-se.

A irmã de Susana mui raramente vinha a Paris e, por ocasião da morte do cunhado e da enfermidade da irmã, limitara-se a escrever, enviando à viúva condolências e votos de pronto restabelecimento. Mas, percebendo que o velho pai estava prestes a deixar o mundo, dera-se pressa em se abeirar do seu leito, em vista da pequena fortuna do antigo educador de Blois.

Carolina encontrou a irmã em lamentável estado. Não obstante as preocupações egoísticas de um temperamento somítico, não abraçou Susana sem chorar. A desventurada viúva dirigiu-lhe comovedoras exortações, que lhe calavam fundo no espírito.

— Talvez não saibas, Carolina — dizia exaltada —, que me tornei criminosa aos olhos dos homens e diante de Deus… Condenei Madalena Vilamil ao desterro e à miséria, para desposar Cirilo, na América… Fiz tudo quanto quis, mas Deus deixa agora que o diabo me peça contas de meus atos condenáveis!…

— Acalme-se… — exclamava Alcíone em atitude de serva devotada. — A senhora está se entregando a emoções muito fortes com a chegada de sua irmã.

— Quem é esta enfermeira tão adequada às nossas necessidades? — perguntava Carolina à Beatriz, com interesse.

Vendo, porém, que a irmã encontrava certa dificuldade em se explicar, a própria Alcíone esclareceu:

— Sou empregada da senhora Davenport, ainda ao tempo em que ela gozava saúde.

— Pois bem, minha menina — replicava a visitante como quem se sente bem ao reconhecer que outros tomam para si o trabalho ou a dificuldade que lhe pertencem —, Deus há de ajudá-la pelo devotamento com que cumpre os seus deveres.


16 Carolina permanecia ali, sob forte impressão.

— A loucura de Susana é bem singular disse espantada. — Por que se referirá a crimes que absolutamente não praticou?

— Diz o médico — esclareceu a enfermeira com serenidade — que essa perturbação é comum à maioria dos que têm o cérebro transtornado. Em vista de D. Susana haver-se casado com o primo que a ela se unia, em segundas núpcias, parece sempre preocupada com o assunto, alegando situações imaginárias.

— A explicação do facultativo é muito plausível — acrescentava a tia de Beatriz —; minha irmã era muito amiga de Madalena Vilamil e, possivelmente, lembrar-se-á muito da extinta, nos delírios de sua demência.

— Acresce notar — ajuntava a filha de Madalena — que meu nome é Alcíone Vilamil e esta circunstância não deixará de influir no ânimo da enferma, sempre em minha companhia…

— Isso é muito curioso — explicava a interlocutora —, mesmo porque suas feições são muito semelhantes às da primeira esposa de Cirilo, quando moça.

— Muitos dizem isso — confirmava a moça, com humildade.


17 A senhora de Nemours não ocultou a simpatia que a enfermeira lhe inspirava, tecendo-lhe francos elogios, junto de Beatriz.

No dia imediato ao de sua chegada, eis que o velhinho generoso, depois de longos padecimentos físicos, despede-se do mundo com grande serenidade. Alcíone resistiu a todos os embates, heroicamente, transformando-se num anjo de socorro para cada um, em particular.

Depois do funeral, foi debalde que um dos jovens, filho de Carolina, insistiu para regressarem ao Norte. A esposa do Sr. de Nemours alegava, confidencialmente, precisar conhecer o testamento paterno. O genitor deixara regular quantia em dinheiro de contado, e Carolina queria tomar conhecimento das suas últimas disposições.

O documento, no entanto, aberto daí a três dias, reservava grande surpresa ao seu coração egoísta. Jaques Davenport deixava a pequena fortuna para Alcíone Vilamil, declarando que sua resolução obedecia ao fato de que as filhas e os netos se encontravam devidamente amparados por vastas possibilidades financeiras; e que a sua deliberação testamentária nada mais representava que um ato de gratidão para com a enfermeira amada, a cujo carinho se sentia ligado por eterno reconhecimento.


18 Alcíone chorou, comovidamente, ouvindo a leitura, e, enquanto Beatriz não conseguia dissimular a satisfação que lhe vagava n’alma, a tia mergulhava-se em contrariedade intraduzível.

Reconhecida a última vontade do morto, Carolina Davenport entrou a pensar seriamente na possibilidade de uma destituição. À noitinha, aproximou-se da filha de Susana, falando-lhe do assunto com gravidade.

— Beatriz — começou a dizer a senhora de Nemours algo irritada —, não posso calar a estranheza que me causou a disposição testamentária de papai. Francamente, estou decepcionada.

— Pois eu, titia, muito pelo contrário, penso de outro modo. Acho que vovô praticou um ato de grande justiça.

— Como assim? Não vejo razões que justifiquem esse ato. Nunca acreditei que meu pai olvidasse a prole para valorizar apenas os serviços de uma criada. Estou disposta a pleitear a anulação do testamento. Meu velho pai deve ter sido lamentavelmente enganado…

— Não diga isso! — tornou a sobrinha revelando nobre preocupação. — Alcíone, em nossa casa, desempenha o papel de uma filha. Sou testemunha da sua extrema dedicação. Aliás, até ontem, a senhora não lhe negou os maiores elogios…

— Sim, como serva. Não podia, porém, supor que papai houvesse atingido esses extremos de consideração.

— A senhora, minha tia — esclareceu Beatriz com a delicadeza firme de quem não está disposto a ceder —, é porque tem vivido ausente, anos consecutivos. Naturalmente, não pode aquilatar as elevadas qualidades de que Alcíone é portadora. Ainda é bastante feliz neste mundo, para conseguir enxergar as almas que desempenham a tarefa dos anjos. Desde que se casou, vive tranquilamente em sua propriedade, ao lado do esposo abastado e dos filhos que participam do seu bem-estar, inalterado até hoje. Aliás, devo dizer que esta opinião era a de vovô, sempre queixoso da sua ausência. Nós, porém, não podemos partilhar com a senhora a mesma apreciação. O falecimento de meu pai nos trouxe lições muito amargas, que Alcíone nos tem ensinado a compreender com a sua bondade sem limites… Em todo o curso da moléstia de minha mãe, seu devotamento tem tocado ao heroísmo.


19 A interlocutora parecia ouvir superficialmente os argumentos da jovem, respondendo com certa secura:

— Não posso aceitar a opinião da tua mocidade inexperiente. A meu ver, Alcíone é criatura com muitos predicados excelentes, mas não lhe vejo outros títulos que os de serva.

E mostrando o ciúme que lhe envenenava o espírito, em virtude da predileção paterna, rematava:

— Susana está demente, mas eu ainda não perdi a razão. Não concordo com a decisão testamentária e recorrerei à justiça.

A sobrinha, contudo, endereçando-lhe um olhar autoritário, sentenciou:

— Jamais supus que a senhora descesse a tal deliberação apenas por alguns milhares de francos, concedidos por um coração generoso a uma órfã. Saiba, porém, minha tia, que não ficarei inativa ante os juízes de Paris. Sua reclamação poderá vingar, mas eu darei à Alcíone, publicamente, um legado que possa equivaler à pequena herança deixada por vovô… Assim, nossos amigos terão ciência de que a reclamação não parte desta casa, e sim de um espírito inconformado e mesquinho.


20 Ante a nobre atitude de resistência, a senhora de Nemours fez um gesto de forte irritação e murmurou desolada:

— Insultas-me? És muito nova para discutir comigo. Estou a ver que tu e a serva transtornaram a cabeça do velhinho doente, induzindo-o a testamento tão singular…

— Poderá julgar como lhe ditam os sentimentos próprios.

Carolina corou, fortemente excitada e resmungou:

— Volto hoje mesmo para casa. E ficas ciente, Beatriz, que não precisamos do dinheiro do papai, nem do teu. Tratei do assunto da herança, porque todos somos obrigados a honrar a justiça, mas nunca precisarei dessa miséria de alguns escudos. E que Deus te proteja, para que a serva intrusa não te cause sérias decepções.

A sobrinha lançou-lhe um olhar altivo e murmurou muito calma:

— Agradeço a sua decisão de partir. É melhor que o escândalo fique só entre nós e que a senhora renuncie à primeira disposição que me levaria também a público, como sua adversária.

Não obstante a preocupação de abandonar o palacete da Cité, naquela mesma noite, Carolina Davenport, contida pelos filhos, esperou pela manhã, quando se retirou de Paris, despedindo-se da sobrinha secamente.


21 Por essa época, Henrique de Saint-Pierre começou a cooperar mais assiduamente na solução dos negócios que envolviam a antiga residência de Cirilo. No círculo de tantas dores e preocupações, somente a perspectiva do casamento próximo de Beatriz oferecia ensejo a determinadas esperanças de paz. A noiva aguardava as melhoras da genitora para marcar a data do consórcio. Desde há muito, o rapaz manifestava desejos de não adiar o enlace por mais tempo; no entanto, Beatriz não se sentia bem, entregando à Alcíone o peso de todos os encargos, relativamente à enferma. Susana, logo após o falecimento do velho professor, atingira um estado especial de inércia, piorando sempre, a olhos vistos. As duas filhas de Cirilo revezavam-se devotadamente no sentido de amparar a doente com todos os recursos ao seu alcance. Alcíone andava abatida. No entanto, as lutas agravavam-se, cada vez mais.


22 Certa noite, Robbie, já quase homem feito, demorou-se mais que de costume. A filha de Madalena inquietou-se, sentindo que algo de grave sucedera, amargurando-lhe o coração. De fato, enquanto confiava à irmã os pensamentos que a atormentavam, um portador do abade Durville, clérigo de São Landry, pedia sua presença urgente.

— Senhorita — exclamou respeitosamente, dirigindo-se à moça, que o ouvia  surpreendida —, o Sr. Robbie há duas horas foi vítima de um desastre, quando mal havia saído da igreja…

— Que foi? — inquiriu Alcíone sem disfarçar a enorme aflição.

— O rapaz ia distraído quando um carro o colheu, brutalmente: Os cavalos espantaram-se e o cocheiro não teve tempo de evitar o desastre lamentável.

— E como está ele?

— Muito mal. As feridas do peito sangram com abundância, mal pode falar e pediu ao Abade Durville que a prevenissem com urgência.

— Não há tempo a perder — murmurou Beatriz. Daí a minutos, o carro dos Davenport safa à pressa, conduzindo as duas irmãs.


23 Em um recanto da igreja de São Landry, o filho adotivo de Madalena experimentava o esgotamento rápido de suas forças. O sangue borbulhava, incessante, das feridas abertas. Debalde um médico aplicava os recursos limitados da sua ciência. O afluxo de sangue cedera em determinadas regiões, mas a incisão profunda, ao longo do peito, era uma fonte inestancável. Não havia mais esperanças. Durville e alguns companheiros assistiam-no, certos de que o músico estava perdido.

Percebendo a seu lado a irmã muito querida, o rapaz pareceu concentrar as energias supremas, no desejo de lhe transmitir os últimos pensamentos. A voz era-lhe como um sopro. Alcíone inclinou-se, esforçando-se para não chorar; beijou-o com enternecimento fraterno e sentou-se, ali mesmo, para que a fronte dilacerada lhe repousasse no regaço fraterno. O ferido esboçou um sorriso leve que sensibilizou os assistentes.

— Então, Robbie? como foi isso? — perguntou a irmã, quase colando os lábios aos seus ouvidos.

— Deve ser… a vontade de Deus… que se cumpriu…

Alcíone, muito comovida com a doce resignação do moribundo, voltou a dizer:

— Levar-te-ei comigo para casa. Haveremos de tratar das feridas, com atenção. O carro nos espera à porta.

O ferido tentou fazer um gesto que significasse a sua impossibilidade absoluta, chegando tão somente a murmurar:

— Não posso mais…


24 Beatriz procurou o facultativo, que tirava o avental tinto de sangue e pediu licença para mover o rapaz. O doutor, entretanto, não concordou, exclamando:

— É inútil! A providência apenas agravaria os padecimentos do infeliz. Seus minutos estão contados. O grande ferimento do peito, produzido pela pata do animal, é irremediável.

— O caso é assim tão grave? — indagou a filha de Susana, alarmada.

— A morte é uma questão de momentos — respondeu o médico, um tanto displicente.

Alcíone, que compreendia a situação, inclinara-se para o moribundo, como se estivesse acariciando um filhinho.

— No instante em que se verificou o desastre — esclarecia o Abade Durville em voz alta —, quis prender o cocheiro culpado, a fim de puni-lo, como de justiça, mas Robbie não consentiu, dizendo-se o único culpado do incidente.

O rapaz olhou a irmã, longamente, ansioso de ler no seu rosto a aprovação de sua atitude. A filha de Madalena entendeu a sua linguagem silenciosa e disse:

— Fizeste muito bem, Robbie. É preciso não disputarmos com o mundo, a fim de encontrarmos o caminho que conduz a Deus.

 O agonizante teve uma expressão de grande conforto íntimo e, reunindo as suas reduzidas possibilidades orgânicas, falou entrecortando as palavras:

— Desde que mandei os gendarmes libertar o cocheiro, por entender que me cabia a culpa… sinto que não tenho mais a pele negra, que tenho a mão e a perna… curadas… veja Alcíone…

E fazendo um esforço ao qual não podia corresponder a mão quase hirta, continuava, murmurando:

— Minha mão tem agora cinco dedos… e tenho a impressão de que me curei dos olhos para sempre… Somente não posso levantar-me e acompanhar-te… mas depois que dormir… penso que ficarei bom.


25 A irmã adotiva acentuou vertendo algumas lágrimas:

— São estas as provas redentoras, meu querido Robbie! Deus te restitui a saúde da alma, por te considerar novamente digno.

Mas o médico que conversava com Beatriz e o abade Durville, a distância de dois passos, acrescentava:

— Creio que a pobre rapariga não conhece o delírio da morte. O agonizante começa a desvairar. Deve ser o fim.

Longe de ouvir a opinião descriteriosa do mundo, Alcíone conchegava o irmão de encontro ao peito, elevando-se a Jesus em preces fervorosas.

— Sinto… muito sono… — disse Robbie num sopro débil.

A filha de Madalena afagou-o com mais ternura e o músico adormeceu para sempre, no mundo, para despertar numa vida mais alta.


26 O doloroso incidente, que arrebatara o irmão adotivo para a Esfera espiritual, deixara Alcíone muito mais abatida do que fora de prever. Saint-Pierre cuidou do funeral com a maior solicitude.

Terminada, porém, a cerimônia fúnebre, que se havia revestido de tocante simplicidade, a jovem Vilamil começou a experimentar penosa angústia no coração. Nunca sentira tamanha sensação de soledade no mundo. Robbie era o último traço da sua infância e da sua juventude. Amargurosa saudade empolgou-lhe o coração. A antiga chácara de Ávila  †  ficara muito distanciada no tempo. Dolores e João de Deus, os bons amigos da meninice, jamais haviam dado sinal de vida, do seu longínquo recanto; padre Damiano e sua mãe haviam partido, seu pai e o avô lhes haviam seguido os passos no caminho da morte, Carlos afastara-se pela incompreensão, Robbie descera à sepultura.

Dominada pela tristeza dos espíritos solitários, a filha de Madalena recolheu-se ao aposento particular. Aí chegando, chorou convulsivamente, em atitude contraria a todos os seus hábitos. Abraçando o velho crucifixo, junto do qual tantas vezes D. Margarida e Madalena haviam chorado, dizia sentidamente:

— Ah! meu Jesus, não me desampares!…

Foi aí que a pobre louca, dando pela sua falta, aproximou-se, depois de abrir a porta levemente cerrada, exclamando de olhos inexpressivos, num impulso maquinal:

— Alcíone!… Alcíone!…

A interpelada enxugou o pranto, recolocou o crucifixo no lugar primitivo, levantou-se solícita e foi ao encontro da enferma, com ternura:

— Ah! como me esqueci da senhora!… E abraçando a pobre demente, conduziu-a com muito carinho ao quarto de dormir.


Emmanuel



[1] Todas as manifestações de Espíritos obsessores, no tempo antigo, eram tomadas à conta de aproximação de Satanás. — Nota de Emmanuel.


[2] O povo de Paris dava ao Espírito das trevas a designação de “Padeiro”, a fim de não pronunciar a palavra “Diabo”. — Nota de Emmanuel.


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

Abrir