O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Sexo e destino — André Luiz — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 1ª Parte


Capítulo 11

(Sumário)

1. Colaborando nós na assistência a Dona Beatriz, que enlanguescia sempre, tornamos a ver Marita, no encerramento da tarefa diária.

2 Chegara novembro com chuvas torrenciais.

Naquele dia, depois de algumas horas marcadas de canícula intensa, nuvens gigantescas ocultavam os picos, abreviando o crepúsculo, que se adensava, abastecido de água e névoa. Copacabana molhada, nas horas de movimentação culminante, acentuara a algazarra. Todo o povo que transitava nas ruas parecia disputar a melhor num concurso de pressa. Maratona improvisada. Veículos despejavam filas enormes de pessoas, evidentemente sequiosas de tranquilidade doméstica, que vinham do norte e do centro, carros fonfonavam no espelho irrigado do asfalto, pedindo vez. Transeuntes encapuzados acotovelavam-se, esperando as conduções que vinham do extremo sul.

3 A filha adotiva de Cláudio alcançou o vasto edifício, arrostando o aguaceiro.

De Copacabana ao Flamengo, o trajeto de ônibus, tão logo iniciado, fora rápido, e do coletivo até a casa o trecho de caminho constara simplesmente de alguns passos; contudo, mesmo assim, despiu a capa, diante do elevador, como quem deixava a piscina.

4 Tudo frio e sombra, em torno; entretanto, mais dolorida que a tarde caliginosa, surgia-lhe a alma atormentada, através dos olhos pisados de cansaço e vigília.

5 De subida, a vizinha solicitou-lhe a atenção para os adornos leves que carregava numa cesta de arame. A jovem, chamada a si, examinou ligeiramente os papéis pintados para festiva noite de aniversário, em apartamento próximo, pronunciou automaticamente breves palavras de admiração e ensimesmou-se, abafada, para somente aliviar-se, de algum modo, ao reconhecer-se no recanto familiar.

6 Ninguém a esperava.

Sozinha, estirou-se no leito, procurando recapitular os acontecimentos da véspera, mas o estômago reclamava alimento. Recordou que varara o dia em absoluto jejum. Levantou-se. Consultou os recursos da copa; entretanto, os pratos que haviam sobejado não lhe acordaram o apetite. Não obstante a temperatura baixa a se lhe refletir nas mãos álgidas, sentia excitação, calor. Fatigara-se de pensar, trazia os nervos tensos. Desejou mate frio. Abriu a geladeira e serviu-se. Parou os olhos pestanejantes no telefone a distância curta. Não se conteve. Discou. Da residência dos Torres, porém, uma voz imprecisa informou que Gilberto saíra, não estava. Ela esmoreceu ainda mais…

7 Arrastou-se, tornando ao quarto, e descerrou a janela. Queria desafogar-se no ar fresco.

Debruçou-se no parapeito, contemplando a cidade, lá em baixo. Sob a chuva, os automóveis figuravam-se animais fugitivos.

8 A moça refletia, refletia… Mirando o casario iluminado, deduziu que milhares de pessoas aí se aglomeravam, suportando talvez problemas piores ou semelhantes aos dela, inquirindo, em vão, de si mesma, o porquê de encontrar-se tão entranhadamente agrilhoada a Gilberto, quando centenas de rapazes respiravam, não longe, com excelentes predicados para lhe interessarem o coração.

9 Sentia-se desalentada, insatisfeita. Aspirava a entreter-se, fugir de si mesma.

Inutilmente fez menção de envergar um casaco e descer à rua, a fim de se distrair, apesar do mau tempo. Entretanto, não era apenas a chuva copiosa que lhe frustrava os impulsos. O espírito almejava deslocar-se, o corpo não. Exacerbação e fadiga. Tentou engolfar-se na leitura reacomodando-se no leito, depois de apanhar uma novela, em que o marcador lhe indicava o lance interrompido, mas lembrou-se de Cláudio. O pai adotivo raramente atrasava e, desde a véspera, não conseguia recordá-lo sem temor. Reergueu-se e preparou-se para o descanso. Precavida, apagou todas as luzes. Quando chegasse, decerto acreditá-la-ia distante.

10 Trancada agora na sombra, atirou-se à cama, com o abandono de quem larga um fardo importuno, e passou a meditar… Realinhavou na memória todas as esperanças e sonhos, provas e inibições da existência curta, deitando lágrimas no linho do travesseiro.

11 Daí a instantes, escutou os passos do chefe da casa, que se movia de uma peça para outra. Pela sutileza do andar, percebeu quando Cláudio veio, muito de leve, espreitar-lhe o aposento. Experimentou a maçaneta, mas não insistiu. Ela e Marina guardavam o hábito da vedação, ao se ausentarem à noite. Ouviu o barulho inconfundível da garrafa em atividade e, logo após, assinalou-lhe o regresso à rua, ao mesmo tempo que lhe notava o nervosismo pela maneira violenta de cerrar a porta, ao sair.

12 Aliviada, fez-se menos inquieta.

Marita achava-se realmente só, de vez que até mesmo os dois vampirizadores do apartamento, ao que presumíamos, andavam fora, ajustados ao companheiro.

Horas passaram, lentas, difíceis…


2. Onze em ponto, quando Neves e eu nos dispusemos ao socorro magnético. Oramos, exorando a bênção do Cristo e o concurso do irmão Félix, a beneficio da moça exausta.

2 Mobilizamos as possibilidades de nosso âmbito estreito.

Ela, a princípio, reagiu negativamente, empenhando-se na vigília, mas cedeu, enfim.

Operamos, cautelosos, reduzindo-lhe a capacidade de movimentação, obrigados que nos víamos a prever-lhe o intento de reunir-se a Gilberto, qual sucedera na véspera.

3 Efetivamente, desligada do corpo, expressou completo alheamento, sem manifestar o mínimo interesse pelo ambiente.

Absorvida na paixão que lhe empalmava todas as forças, monologava, ideando alto:

— Gilberto! Onde está Gilberto?

4 Tentou equilibrar-se; entretanto, rodopiou, vacilante.

— Alguém que me ampare! — Mendigou, aflita, — preciso encontrá-lo, encontrá-lo!…

Apoiamo-la, prestos.

5 Iniciávamos a saída quando se abeirou de nós simpática senhora desencarnada, declarando-se mensageira do irmão Félix, que nos esperava num posto socorrista.

6 Prestimosa, abraçou a paciente com o jeito característico da mulher e pusemo-nos mais facilmente a caminho.

Demandaríamos bairro próximo, onde respeitável instituição espírita-cristã nos ofereceria aconchego, — instruiu a recém-chegada, que se nos apresentara sob o nome de irmã Percília.

7 Notei que Neves e ela permutaram delicadezas mudas, revelando conhecimento anterior. Percília, contudo, não se demorou em qualquer consideração individual. Mais entregue ao trabalho que a si mesma, conversou com a frágil menina, encorajando-a. Esforçava-se por descentralizar-lhe a atenção, apontando quadros e ocorrências do trajeto, sem resultado. 8 A moça não apresentava outros pensamentos, palavras e objetivos que não fossem Gilberto. Fascinação, enredando todos os reflexos. A cada apontamento afetuoso, revidava perguntando em que lugar e a que instante seria finalmente conduzida à presença dele, ao que a benfeitora respondia, com admirável senso materno, sem a menor expressão de chiste ou desagrado, qual se palestrasse com uma filha doente, procurando reajustá-la dentro de amorosa solicitude, comportamento esse com que nos impelia à imitação. 9 Nem Neves e nem eu nos sentíamos, dessa forma, inclinados a considerar, de maneira negativa, nenhuma daquelas frases francas de menina e moça, que lhe denotavam os estímulos sexuais, limpos e inocentes, convertendo-a, naquela hora, em criança extrovertida.

10 Alcançando o recinto de atividades espirituais que se nos erguia por meta, fomos acolhidos pelo irmão Félix, em pessoa, acompanhado de mais dois amigos.

11 O instrutor inteirou-nos de que nos recebera o comunicado, acentuando, modesto, que, dispondo de algum tempo, deliberara vir, ele próprio, examinar o que sucedia.

12 Marita contemplou-o extática, indiferente, figurando-se aparvalhada, absolutamente inepta e distante para avaliar a importância do sábio que a brindava com paternais gentilezas.

13 Mentalmente encravada nas recordações do jovem Torres, as indagações que propunha dariam decerto para escandalizar, não estivéssemos preparados a fim de auscultar-lhe os conflitos.

14 Amparada por Félix que nos dirigia, tolerante, entrou no edifício, inquirindo se havia chegado, por fim, ao clube onde comumente surpreendia Gilberto; encaminhada ao compartimento espaçoso, em que recolheria o necessário socorro magnético, quis saber o motivo pelo qual se imprimira tanta mudança ao salão de baile; mirando, distanciada, pequena equipe de servidores desencarnados, que desenvolvia tarefa assistencial, em ângulo oposto, alegou que a orquestra não devia adotar silêncio contínuo, e, escutando as buzinas que guinchavam, na rua, procurou descobrir se Gilberto vinha chegando para dançar.

15 De raciocínio obliterado, qual se achava, lobrigava por fora as criações mentais que arquitetava por dentro, sem ligeira noção da realidade exterior.

16 Félix, no entanto, ouvia-lhe todas as manifestações inconsideradas, com a ternura de um pai. Grave sem aspereza, compreensivo sem atitudes açucaradas que lhe comprometessem a autoridade de educador. Replicava sempre entre a bondade e a circunspeção devidas a um enfermo, abstendo-se de melindrar-lhe os sentimentos ou de encorajar-lhe as ilusões.

17 Instalando-a em ampla cadeira, fê-la descansar na hipnose tranquila.

Calou-se Marita, ilhada nas memorizações em que se comprazia, ao passo que o instrutor lhe ministrava passes balsâmicos.

18 A operação magnética foi longa, minuciosa.

Em seguida, Félix rogou-lhe falar, expondo o que mais anelasse de nós, ao que a moça gaguejou acanhada, suplicando a presença de Gilberto e asseverando que alimentava dúvidas sobre se aquele era realmente o grêmio em que se entrevistavam… Pediu socorro, proteção… Inclinou-se para Percília, no impulso da criança, quando tem fome do colo materno, e chorou, de manso, como a implorar que não a detivéssemos.

19 O irmão Félix, compassivo, informou-nos, sem que a paciente lhe penetrasse o fundo das elucidações, que, infelizmente, a intervenção efetuada em favor dela não poderia ultrapassar a superfície, prevalecendo tão só para a sustentação do repouso físico; 20 que a paixão juvenil se convertera em psicose grave; que a pobre menina se deixara arrastar pelo desvario afetivo, a ponto de cair no pior tipo de possessão, aquele no qual a vítima adere, gostosamente, ao desequilíbrio em que se consome.

21 E acentuou que lhe consultara o organismo no sentido de se lhe atalhar a alienação mental começante, com o socorro de alguma enfermidade séria que, ao arrojá-la no leito, lhe modificaria a mente, predispondo-a a diferentes impressões; entretanto, o corpo da jovem não se mostrava habilitado a receber esse gênero de amparo. 22 Marita, sumamente desorientada e enfraquecida, desencarnaria no desajuste orgânico mais pronunciado que viesse a sofrer, em caráter providencial. Não surgia outra alternativa, senão a de esperar pela resistência moral dela própria.

23 Convidados a escoltá-la até a casa, Neves, Percília e eu colocamo-nos, de volta.

Marita não revelava aspecto algum para melhor, quanto à condição mental, mas o auxílio magnético surtira efeito imediato e salutar, porquanto, reajustada ao corpo denso, passou a repousar sem agitação, pelo que deixamo-la a dormir profundamente.

24 Despedimo-nos de Percília, ante o céu estrelado, e, de novo a sós, talvez porque me sentisse a indagação inarticulada, Neves confidenciou:

— André, você conhece essa senhora?

25 E, ao meu sinal negativo:

— Essa é a mesma que eu vi no cabaré, quando agredi meu genro, num gesto impensado; a desconhecida que me apoiou, no regresso ao aposento de Beatriz, apenas com a diferença de que hoje não traz consigo o distintivo luminoso… Mas, não tenho dúvida alguma. É a mesma pessoa…


André Luiz


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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