O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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O Livro dos Espíritos — Livro II — Leis morais.

(1ª edição)
(Idioma francês)

Capítulo X.


IX. Lei de liberdade.

Liberdade natural. — Escravidão. — Liberdade de pensar. — Liberdade de consciência. — Livre-arbítrio. — Fatalidade. (Questões 418 a 441 c.)


418. Haverá posições no mundo em que o homem possa vangloriar-se de gozar de absoluta liberdade? [Questão 825.]
“Não.”


418 a. Por quê?
“Porque todos precisais uns dos outros, tanto os pequenos como os grandes.” [Questão 825.]


418 b. Em que condições o homem poderia gozar de absoluta liberdade? [Questão 826.]
“Nas do eremita no deserto.”


Só haveria liberdade absoluta para o homem que vivesse sozinho, numa terra sem dono. Desde que dois homens estejam juntos, há entre eles direitos a serem respeitados e, portanto, nenhum deles gozará de liberdade absoluta.


419. A obrigação de respeitar os direitos alheios tira ao homem o direito de ser senhor de si mesmo? [Questão 827.]
“Não.”


419 a. Haverá homens que estejam, naturalmente, destinados a ser propriedade de outros homens? [Questão 829.]
“Não; a escravidão é um abuso da força. Desaparece com o progresso, como gradativamente desaparecerão todos os abusos.”


Ninguém tem o direito natural de apropriar-se de outro homem. Toda sujeição absoluta de um homem a outro homem é contrária à Lei de Deus. A lei humana que consagra a escravidão é contrária à Natureza, pois equipara o homem ao animal e o degrada moral e fisicamente.


420. Quando a escravidão faz parte dos costumes de um povo, os que dela se aproveitam merecem ser condenados, embora só o façam conformando-se com um uso que lhes parece natural? [Questão 830.]
“Já dissemos várias vezes: o mal é sempre o mal e nenhum de vossos sofismas fará que uma má ação se torne boa. Mas a responsabilidade do mal é relativa aos meios de que o homem disponha para compreendê-lo.”


Aquele que tira proveito da lei da escravidão é sempre culpado de violação da lei da Natureza. Mas aí, como em tudo, a culpabilidade é relativa. Tendo a escravidão feito parte dos costumes de certos povos, foi possível ao homem aproveitar-se dela, ainda que de boa-fé, como de uma coisa que lhe parecia natural. Desde, porém, que sua razão, mais desenvolvida e, sobretudo, esclarecida pelas luzes do Cristianismo, lhe mostrou que o escravo era um seu igual perante Deus, não tem mais ele nenhuma desculpa.


421. A desigualdade natural das aptidões não coloca certas raças humanas sob a dependência de raças mais inteligentes? 126 [Questão 831.]
“Sim, para as elevar, e não para embrutecê-las ainda mais pela servidão.”


422. Há homens que tratam seus escravos com humanidade, que não lhes deixam faltar coisa alguma e acreditam que a liberdade os exporia a maiores privações. Que dizeis disso? [Questão 832.]
“Digo que esses compreendem melhor seus interesses. Também dispensam muito cuidado aos seus bois e cavalos, para que obtenham bom preço no mercado.”


Tais homens não são tão culpados como os que maltratam os escravos, mas nem por isso deixam de dispor deles como de uma mercadoria, privando-os do direito de serem donos de si mesmos.


423. Haverá no homem alguma coisa que escape a todo constrangimento e pela qual ele goze de absoluta liberdade? [Questão 833.]
“Sim, a liberdade de pensar.”


423 a. Pode-se impedir a manifestação do pensamento?
“Sim, mas o pensamento não. É pelo pensamento que o homem goza de liberdade sem limites.”


424. O homem é responsável por seu pensamento? [Questão 834.]
“Perante Deus, sim. Como, porém, somente Deus é capaz de conhecê-lo, Ele o condena ou absolve, segundo sua justiça.”


425. A liberdade de consciência é uma consequência da liberdade de pensar [Questão 835.]
“Sim, pois a consciência é um pensamento íntimo.”


425 a. O homem tem direito de pôr obstáculos à liberdade de consciência? [Questão 836.]
“Não, assim como não o tem com referência à liberdade de pensar.”


425 b. Qual o resultado dos obstáculos interpostos à liberdade de consciência? [Questão 837.]
“Fazer hipócritas.”


Só a Deus cabe o direito de julgar o bem e o mal absoluto. Assim como os homens, mediante suas leis, regulam as relações de homem para homem, Deus, pelas leis da Natureza, regula as relações entre Ele e os homens.


426. O homem deve manter-se preso a uma crença que foi escolhida por terceiros, quando ainda não tinha consciência de si mesmo?
“O bom senso responde a esta questão. Por que fazer perguntas inúteis?”


427. Todas as crenças são respeitáveis? [Questão 838.]
“Sim, desde que sinceras e quando conduzem à prática do bem.”


427 a. Há crenças condenáveis?
“Sim; as que conduzem à prática do mal.”


428. Será repreensível quem escandalize, em razão de sua crença, um outro que não pense como ele? [Questão 839.]
“Isso é faltar com a caridade e atentar contra a liberdade de pensamento.”


429. Será atentar contra a liberdade de consciência interpor obstáculos a crenças capazes de causar perturbações à sociedade? [Questão 840.]
Podem reprimir-se os atos, mas a crença íntima é inacessível.”


Reprimir os atos exteriores de uma crença, quando acarretem qualquer prejuízo a terceiros, não é atentar contra a liberdade de consciência, pois essa repressão deixa à crença sua inteira liberdade.


430. Por respeito à liberdade de consciência, devemos deixar que se propaguem doutrinas perniciosas, ou podemos, sem atentar contra aquela liberdade, procurar trazer ao caminho da verdade os que se transviaram obedecendo a falsos princípios? [Questão 841.]
“Certamente que podeis e até deveis. Mas ensinai, a exemplo de Jesus, pela persuasão e pela brandura, e não pela força, o que seria pior do que a crença daquele a quem desejaríeis convencer. Se alguma coisa se pode impor, é o bem e a fraternidade; mas não cremos que o melhor meio de fazê-los admitidos seja agir com violência. Pela força e pela perseguição só se fazem hipócritas. A convicção não se impõe.”


431. Considerando-se que todas as doutrinas têm a pretensão de ser a única expressão da verdade, por que sinais podemos reconhecer a que tem o direito de se apresentar como tal? [Questão 842.]
“Será a que fizer mais homens de bem e menos hipócritas, isto é, homens que pratiquem a Lei de Deus para com os semelhantes na sua maior pureza.” 127


432. O homem tem o livre-arbítrio de seus atos? [Questão 843.]
“Sim, pois que tem a liberdade de pensar.”


Negar ao homem o livre-arbítrio seria negar nele a existência de uma alma inteligente e identificá-lo com o animal, tanto do ponto de vista moral como físico.


433. O homem traz consigo ao nascer, por meio de sua organização física, a predisposição para tais ou quais atos?
“Sim.”


433 a. A predisposição natural que impele o homem à prática de certos atos anula seu livre-arbítrio? [Questão 845.]
“Não, pois foi ele mesmo quem pediu para ter esta ou aquela predisposição. Se pediste para ter as inclinações do assassínio, foi para teres que lutar contra esta propensão.”


433 b. O homem pode domar todas as suas inclinações, por mais fortes que sejam?
“Sim; querer é poder.”


A organização física do homem o predispõe a tais e quais atos aos quais é impelido por uma força a bem dizer instintiva. Se este pendor natural o conduzir ao mal, poderá tornar-lhe mais difícil o bem, mas não lhe tirará a liberdade de fazer ou deixar de fazer. Com vontade firme e ajuda de Deus, e desde que ore com fervor e sinceridade, não haverá pendores que não possa vencer, por mais fortes que sejam. Assim, o homem não poderia buscar desculpas na sua organização física, sem abdicar da razão e da condição de ser humano, que ele é, para assemelhar-se ao animal.


434. A aberração das faculdades tira ao homem a responsabilidade de seus atos? [Questão 847.]
“Sim; mas como já te dissemos, essa aberração constitui muitas vezes uma punição para o Espírito que, em outra existência, tenha sido fútil e orgulhoso, e haja utilizado mal suas faculdades. Em tal caso, esse Espírito pode renascer no corpo de um idiota, como o déspota no corpo de um escravo e o mau rico no de um mendigo.”


435. A aberração das faculdades intelectuais pela embriaguez servirá de desculpa aos atos reprováveis? [Questão 848.]
“Não, porque foi voluntariamente que o ébrio se privou de sua razão para satisfazer a paixões brutais. Em vez de uma falta, comete duas.”


436. Os animais gozam de livre-arbítrio para a prática de seus atos? [Questão 595.]
“Os animais não são simples máquinas, como supondes. Contudo, a liberdade de ação de que desfrutam é limitada às suas necessidades, não podendo ser comparada à do homem. Sendo bem inferiores a este, não têm os mesmos deveres.”


Os animais seguem mais cegamente a impulsão do instinto que a Natureza lhes deu para sua própria conservação, o que não significa que sejam de todo privados da liberdade de agir. Mas a liberdade de que gozam é restrita aos atos da vida material.


437. Visto que os animais têm uma inteligência que lhes faculta certa liberdade de ação, haverá neles algum princípio independente da matéria? [Questão 597.]
“Sim, e que sobrevive ao corpo.”


437 a. Esse princípio conserva sua individualidade?
“Sim.”


437 b. Será uma alma semelhante à do homem? [Questão 597 a.]
“Não; a alma do homem é um Espírito encarnado. Mas, para os animais, é também uma alma, se quiserdes, dependendo do sentido que se der a esta palavra; contudo, é sempre inferior à do homem. Há tanta distância entre a alma dos animais e a do homem quanto a que existe entre a alma do homem e Deus.”


437 c. Os animais estão sujeitos a uma lei progressiva, como os homens? [Questão 601.]
“Sim, e é por isso que nos mundos superiores, onde os homens são mais adiantados, os animais também o são, embora sempre inferiores e subordinados ao homem.”


437 d. Nos mundos superiores os animais conhecem a Deus? [Questão 603.]
“Não; para eles o homem é um Deus.”


437 e. Os animais seriam a encarnação de uma ordem inferior de Espíritos, constituindo categoria à parte no mundo espiritual?
“Sim, e que não podem ultrapassar certo grau de perfeição.”


437 f. Os animais progridem, como o homem, por ato da própria vontade, ou pela força das coisas? [Questão 602.]
“Pela força das coisas, razão por que não há expiação para eles.”


438. Qual a faculdade predominante no homem em estado de selvageria: o instinto ou o livre-arbítrio? [Questão 849.]
“O instinto.”


438 a. O desenvolvimento da inteligência aumenta a liberdade dos atos?
“Certamente, e é por isso que és mais esclarecido do que o selvagem, e também mais responsável do que ele.”


439. A posição social não constitui às vezes, para o homem, um obstáculo à inteira liberdade de seus atos? [Questão 850.]
“Sim, algumas vezes; o mundo tem suas exigências.”


439 a. A responsabilidade, neste caso, também é grande?
“Deus é justo. Ele leva tudo em conta, mas vos deixa a responsabilidade pelos esforços que façais para superar os obstáculos, por mais insignificantes que sejam.”


440. O livre-arbítrio não está também subordinado à organização física, e não pode ser entravado em alguns casos pela predominância da matéria?
“O livre-arbítrio pode ser entravado, mas não anulado. Quem aniquila a mente para só se ocupar da matéria torna-se semelhante ao animal; pior ainda, pois não cuida mais de se premunir contra o mal, e é nisto que é culpado.”


Desprendido da matéria, o Espírito escolhe suas existências corpóreas futuras de acordo com o grau de perfeição a que tenha chegado. Como já dissemos, é principalmente nessa escolha que consiste seu livre-arbítrio. Essa liberdade não é anulada de modo algum pela encarnação; se cede à influência da matéria, é porque sucumbe ao peso das próprias provas que escolheu. Para o auxiliar a vencê-las, ele pode invocar a assistência dos Espíritos bons.


441. Haverá fatalidade nos acontecimentos da vida, de acordo com o sentido atribuído a este vocábulo? Em outras palavras, todos os acontecimentos são predeterminados? Neste caso, que vem a ser do livre-arbítrio? [Questão 851.]
“A fatalidade só existe pela escolha que o Espírito fez, ao encarnar, de sofrer esta ou aquela prova; depois, se juntam a esta escolha de tais provas os conhecimentos que deves adquirir, estando de tal modo ligado um ao outro que constitui o que tu chamas fatalidade. Como dizíamos há pouco, o homem, por dispor de mais liberdade de ação, entrega-se excessivamente à matéria, atraindo sobre os que o cercam uma porção de dissabores. Mas isto diminuirá quando forem extirpados os vícios de vossa sociedade.”


441 a. O instante da morte está invariavelmente fixado?
“Sim, a hora está marcada.”


441 b. Assim sendo, seja qual for o perigo que nos ameace, não morreremos se a hora da morte ainda não chegou? [Questão 853 a.]
“Não; não perecerás e tens disso milhares de exemplos. Quando, porém, chegar a hora de tua partida, nada poderá impedir que partas. Deus sabe de antemão qual o gênero de morte que te levará da Terra e muitas vezes teu Espírito também o sabe, visto que isso lhe foi revelado ao fazer a escolha desta ou daquela existência.”


441 c. Se a morte não pode ser evitada quando tem de ocorrer, dar-se-á o mesmo com todos os acidentes que nos sobrevêm no curso da vida? [Questão 859.]
“Não; trata-se, amiúde, de coisas demasiadamente pequenas para que vos possamos prevenir a seu respeito, e algumas vezes fazer que as eviteis, dirigindo vosso pensamento, pois nos desagrada o sofrimento material. Mas isso tem pouca importância para a vida que escolhestes. A fatalidade, verdadeiramente, só existe quanto ao momento em que deveis aparecer e desaparecer deste mundo. Como deveis revestir vosso envoltório para poder suportar vossas provas e receber nossos ensinamentos, razão pela qual vos apegais à vida, considerais isso como uma fatalidade, quando é uma felicidade.”


Tal como vulgarmente é entendida, a fatalidade supõe a decisão prévia e irrevogável de todos os acontecimentos da vida, seja qual for sua importância. Se fosse esta a ordem das coisas, o homem seria qual máquina sem vontade própria. Para que lhe serviria a inteligência, se estivesse invariavelmente dominado, em todos os seus atos, pela força do destino? Se verdadeira, semelhante doutrina seria a destruição de toda liberdade moral; não haveria mais responsabilidade para o homem e, por conseguinte, nem bem, nem mal, nem crimes, nem virtudes. Sendo Deus soberanamente justo, não poderia castigar suas criaturas por faltas que não dependiam delas cometer, nem recompensá-las por virtudes de que não tivessem mérito algum. Tal lei seria, além disso, a negação da lei do progresso, considerando-se que o homem, por esperar tudo da sorte, não tentaria fazer coisa alguma para melhorar sua posição, visto que não conseguiria ser melhor nem pior. Apesar disso, a fatalidade não é uma palavra sem valor. Existe na posição que o homem ocupa na Terra e nas funções que aí desempenha, em consequência do gênero de existência que seu Espírito escolheu como prova, expiação ou missão. Ele sofre fatalmente todas as vicissitudes dessa existência e todas as tendências boas ou más que lhe são inerentes. Aí, porém, acaba a fatalidade, pois depende de sua vontade ceder ou não ceder a essas tendências. Os detalhes dos acontecimentos estão subordinados às circunstâncias que ele próprio cria por seus atos, e sobre os quais os Espíritos podem influir pelos pensamentos que lhe sugerem.
Há fatalidade, portanto, nos acontecimentos que se apresentam, por serem consequência da escolha feita pelo Espírito antes de encarnar. Pode deixar de haver fatalidade no resultado de tais acontecimentos, visto depender do homem, por sua prudência, modificar o curso das coisas. 128
É na morte que o homem se acha submetido de maneira absoluta e inexorável à lei da fatalidade, pois não pode escapar à sentença que marca o termo de sua existência, nem ao gênero de morte que deve interromper o seu curso (Nota 15). [Questão 872.]



[126] N. E.: Ver “Nota explictiva”, p. 551.


[127] N. T: Esta questão é muito mais abrangente, conforme se depreende do texto abaixo transcrito: “Deus é bom e justo; não quer senão o bem; a melhor de todas as religiões é aquela que só ensina o que é conforme à bondade e à Justiça de Deus; que dá de Deus a maior e a mais sublime ideia e não o rebaixa atribuindo-lhe as fraquezas e as paixões da Humanidade; que torna os homens bons e virtuosos e lhes ensina a se amarem todos como irmãos; que condena todo mal feito ao próximo; que não permite a injustiça sob qualquer forma ou pretexto que seja; que nada prescreve de contrário às Leis imutáveis da Natureza, porque Deus não se pode contradizer; aquela cujos ministros dão o melhor exemplo de bondade, caridade e moralidade; a que procura melhor combater o egoísmo e satisfazer menos o orgulho e a vaidade dos homens; aquela, finalmente, em nome da qual se comete menos mal, porque uma boa religião não pode servir de pretexto a nenhum mal; não lhe deve deixar porta alguma aberta, nem diretamente, nem por interpretação. Vede, julgai e escolhei” (KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo, cap. I, p. 118).


[128] N. T.: Na edição definitiva de 1860, Allan Kardec conclui este parágrafo com a seguinte afirmação: “Nunca há fatalidade nos atos da vida moral”.


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